Maior herança de Michel foi deixar amor da comida árabe aos filhos
De origem libanesa, pai foi um dos primeiros em Campo Grande a comercializar as tradicionais iguarias árabes
Até seus 82 anos, Michel Sauma Ibrahim continuava o assíduo frequentador da lanchonete e mercearia em que foi dono por pelo menos três décadas. Nos últimos anos de vida era do tipo metódico que fazia questão de conferir pessoalmente se tudo estava em ordem.
O #TBT de hoje traz das lembranças das bandejas de quibe assado às fornadas de pão sírio, além das esfirras de carne, pastas frescas, doces árabes e uma lista de itens que não se acaba. Ao dar um pulo na confeitaria que leva o nome de sua cultura natal – a árabe –, era como se o seu passado no Líbano se resumisse àquele ponto de comércio. E assim Michel foi feliz.
Quando o patriarca e comerciante descansou dessa vida, não levou ao túmulo tudo aquilo que produziu ao lado da esposa Madeleine, mas compartilhou a cada um dos quatro filhos a loja que foi sua paixão, o saber-fazer de cada quitute e o sabor inconfundível da tradição em família.
"Nossos almoços de domingo reunia umas 30 pessoas. Minha mãe fazia bacias de esfirra aberta, com pelo menos umas 300 unidades, acompanhadas de salada fatuche. Era um banquete. Ainda, não me esqueço do seu doce de semolina com nozes, o harice. Tudo isso fez o gosto da minha infância", relembra Jean Pierre Ibrahim, 55 anos, o "Nenê". Filho do meio, atualmente dirige ao lado do irmão mais velho Zuhair o tradicional comércio do pai: a Confeitaria Árabe.
Quando ainda eram meninos, por volta dos 10 anos de idade, os dois costumavam acordar cedinho de manhã, entre 3h-4h, e antes de irem para escola ajudavam a mãe a preparar as massas que – ao serem recheadas – se transformam em comida árabe de primeira que o pai vendia na porta de casa que moravam na avenida Calógeras.
Antes disso, Michel havia perdido uma loja inteirinha de roupas devido a um incêndio. Comerciante nato que era, simplesmente migrou para o ramo alimentício. O pontapé da tradição de comida árabe aos campo-grandenses que começou na residência foi parar na rua 14 de Julho, em uma lojinha que ficou aberta por 5 anos. O ano era 1977.
"Lá tinha o nome de Restaurante Árabe. Foi um sucesso porque todo mundo da região frequentava ali. Muitos comerciantes das antigas e seus funcionários, além do público em geral, aproveitavam para almoçar. Atendíamos o dia inteiro e, além do almoço e jantar, tínhamos produtos de mercearia e lanches, sucos e sobremesas. Era uma loucura!", relembra a caçula Bibiane Ibrahim, 48 anos. Enquanto o pai era o caixa e gestor de tudo, a mãe ficava na cozinha junto aos seus dois meninos, ela e a irmã Eva eram as atendentes do lugar.
Da 14, foi quando Michel mudou de ponto onde permanece até os dias de hoje: na rua Sete de Setembro, 458. Inclusive, a primeira das casa de esfirras no logradouro. O que antes era restaurante, agora virou confeitaria. Não porque tinha relação com doces e sobremesas – por mais que o menu até contemple isso – mas devido ao fato de que tudo ali era confeitado à maneira árabe.
"Aqui eu atendo já a terceira geração de clientes. O que começou com meu pai, com a clientela das famílias tradicionais da época, veio parar para mim e Zuhair. Hoje já não atendendo mais os patriarcas, mas seus filhos e até netos. A essência daqui é a mesma. Por mais que eu gostaria de reformar o espaço, os campo-grandenses gostam mesmo desse clima original de empório", esclarece Jean Pierre. Assim como o pai, por ali ele conhece todo mundo de nome e é o patrão que cumprimenta "geral".
O comércio do pai é tradicional a ponto de até alguns funcionários da casa chegarem ainda adolescentes – tal qual os filhos de Michel – e, passado 30 anos, formarem suas família "ali dentro".
Origens – De origem libanesa, a história do pai no Brasil começa nos anos 1940, quando veio "fugida" da terra natal com a família inteira. A motivação não poderia ser outra: todos buscavam oportunidades que infelizmente o Líbano – entre guerras civis e desordens econômicas – não poderia oferecer mais.
Nem os filhos negam: Michel tinha cara de bravo, era sistemático ao extremo e – como um bom árabe que era – para ele não existia meio-termo. "Para o meu pai, o certo era o certo. Não era de ficar em cima do muro. Era assertivo, porém justo", considera Jean Pierre. Já Bibiane adiciona: "por mais que tivesse aquela aparência séria, ele tinha um coração enorme, às vezes até mole. Nunca foi pão-duro, pelo contrário, até ajudava demais quem não merecia", diz.
Já a mãe Madeleine, uma "lady" até hoje nos seus 74 anos. "Ela é uma dama sem igual. Acordava maquiada, dormia maquiada. E ainda fazia as comidas! Assim com meu pai, também era de seguir tudo no pé da letra, preto no branco. Os dois juntos faziam a coisa acontecer no comércio, bolavam as iniciativas e colocavam a mão na massa", descreve Jean Pierre.
"As famílias dos meus pais já se conheciam lá da cidade de Zahlé, onde viviam. O engraçado dessa história é que as mães na época 'prometeram' seus filhos um para o outro, mas eles dois só foram se conhecer aqui em MS. De forma natural, e não obrigada, os dois se cruzaram numa festa e dali em diante o resto é história. Os dois tinham uma diferença de 14 anos, minha mãe com 16 e meu pai com 30. Eram outros tempos… e que bom que deu tudo certo", opina Bibiane.
A rotina do filho é até parecida com a do pai. Acorda entre 4h-5h da manhã, toma seu primeiro café em casa e o segundo na confeitaria. Passa o dia todo gerenciando a loja junto do irmão Zuhair, e só deita na cama por volta de 00h. Formado em educação física e bioquímica, profissões que pouquíssimo exerceu, ele garante o ensino do pai: "ele nos ensinou a fazer o que a gente mais gosta. E eu amo estar aqui no nosso cantinho árabe", admite.
E por falar em dormir, foi do dia para a noite, ao deitar na cama, que Michel não acordou mais. Morreu dormindo na tranquilidade que todo mundo sonha um dia ter a chance de se despedir da vida com paz e serenidade. Quando isso aconteceu, Bibiane ficou enlutada por praticamente 1 ano antes de resolver mudar de vida e criar o negócio que atualmente dirige na mesma casa onde um dia toda a família morou junto. O quarto que ela mesma dormia virou uma das lojas no conjunto comercial em que a residência se transformou. E a comida que vende? Originalidade que vem toda da Confeitaria Árabe.
"Eu trabalhei lá até 2015 antes de lançar a Bibi Esfihas. A única que ficou pouco tempo no comércio do meu pai foi a Eva, que casou cedo e trilhou seu caminho. Porém todos nós, sempre que podemos, nos reunimos com a fartura de comida árabe que não somente amamos, mas sabemos fazer graças à sabedoria do meu pai. Foi ele, inclusive, quem ensinou a minha mãe a fazer tudo o que ela sabe. É uma felicidade tremenda lembrar desses tempos passados tão bem vividos", finaliza a filha.
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