Mesmo com os dias terminando às 2h, índio segue firme na faculdade
Emerson faz Letras e mostra que só quem não conhece a realidade acha as cotas o fim das dificuldade para quem vive em aldeias.
A cota ajuda, mas ainda é complicado sobreviver na faculdade quando se nasce índio. São muitos os perrengues cotidianos, como os dias que terminam só às 2 da madrugada para quem vive nas aldeias. Mas nunca tantas etnias estiveram dentro da faculdade.
Estudante de Letras, Emerson Reginaldo, 22, está na universidade há três anos, e também já se sente confortável na sala de aula. Contudo, os olhares nos corredores não passam despercebidos. “Olham diferente pra gente, é a mesma coisa que ocorre com os negros ou pessoa de outra raça”, desabafa.
A rotina é barra pesada, mas ele não desiste. Todos os dias, faz o caminho de ônibus, desde Dois Irmãos do Buriti. “Saio da lá às 15h, venho para a Capital para estudar todos os dias, chego em casa às 2h da madrugada. A correria atrapalha, não tenho tempo de trabalhar. Moro com meus pais, na aldeia mesmo”, conta.
Se adaptar ao conteúdo, também não é fácil. “Além da distância, é um curso que tem algumas matérias complexas para quem vem de uma escola pública da zona rural. É difícil se adaptar, mas não quero desistir”, destaca Emerson. Na última terça-feira (16), o acadêmico ajudou a organizar o evento “Povos Originários na UEMS: Desafios e Conquistas”, que exibiu o documentário “Do bugre ao Terena”, e diz que os encontros em celebração aos indígenas são importantes.
“Foi o segundo evento que organizamos porque, no primeiro ano não teve nada. Ninguém se manifestou. A reunião é uma forma de mostrar que tem índios na faculdade, não somos poucos. Estamos aqui, lutando pelos nossos direitos”, destacou.
Durante o debate, surgem relatos de quem não resistiu em um ambiente muitas vezes abusivo. “Minha colega desistiu do curso neste ano, porque a turma falava mal dos índios, que não merecíamos a cota e nem devíamos estar na faculdade. Ela se matriculou em Letras e Inglês, e tentou mudar para o espanhol posteriormente. Contudo, não conseguiu. Se sentiu acanhada e um mês depois, me falou que não iria mais”, diz a acadêmica de Letras, Kassya Figueiredo..
Terena de Sidrolândia, de segunda a sexta ela sai da aldeia para estudar. No curso de Letras e Espanhol pela UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul), diz que os índios precisam ocupar seu espaço. “Somos indígenas, da luta, da causa, não podemos ter vergonha”.
Difícil é, mas fica mais fácil quando a decisão é pelo enfrentamento, diz. “Nunca passei por uma situação de preconceito porque não abaixo a cabeça. Desde o primeiro dia de aula, me apresentei, falei para a turma que sou indígena da aldeia Tereré, que moro em Sidrolândia e venho todos os dias para a faculdade. Mais duas colegas se identificaram também e a sala nos acolheu, e não ouve nenhum tipo de discriminação”, relata.
Recorde – Neste ano, a UEMS registrou o maior número de estudantes indígenas. São 67 alunos de várias etnias, daqui e de fora do Estado. A professora e doutora, Sônia Albuquerque representa da Rede Saberes – programa de permanência de indígenas no ensino superior – fala dos desafios que os alunos enfrentam na universidade.
“Temos uma quantidade boa de indígenas, é o maior número da história da universidade. Existe um grupo de professores docentes voltados para as questões sociais, étnicos e raciais. Todos os anos, realizamos um evento por ocasião da semana dos povos indígenas, produzido pelos acadêmicos”, disse.
No evento que ocorreu na UEMS, os participantes falaram de nomenclatura, de quem seria o bugre que muitos costumam chamar. “Como se fosse um apelido qualquer, mas não. É tão ofensivo, pejorativo e queremos abrir os olhos para essa conscientização de discriminação, da convivência com o diferente, o respeito”, explica.
Sônia ainda relata as dificuldades mais comuns dos indígenas. “A permanência deles aqui é um desafio, por conta da barreira cultural. O fato do Terena, que é a nossa maior etnia, ser reservado vem da cultura. Ter dificuldade com a língua portuguesa, que não é a materna é normal. É como se fossemos para outro país e precisássemos falar inglês, teríamos dificuldade porque não somos nativos de lá”.
“A língua é difícil e precisamos compreender essas questões, olhar para o indígena como uma pessoa capaz porque acontece até na sala de aula, preconceitos. Os alunos formam grupos de trabalhos, mas os indígenas são os últimos a serem escolhidos. Eles percebem a discriminação no olhar do colega, do professor, nas atitudes”, disse. Sônia relata que a intolerância pode vir de professores. “O preconceito é algo forte. Muitas vezes, negamos. Mas as atitudes entregam”, destaca.
Segundo a professora as aulas começaram em fevereiro deste ano, mas cerca de dez indígenas já desistiram. A quantidade é menor em relação ao mesmo período de 2018, pois algumas medidas para contribuir com os indígenas, principalmente o transporte, estão sendo realizadas. “Descobrimos que esse é um dos fatores da desistência e passamos a incentivar cada um. Às vezes, damos carona, os professores tira do bolso para não deixar o estudante sair da universidade antes do tempo”, contou.