Moradores de favela vivem à base de gambiarras, mas não deixam a peteca cair
Dizem por aí que pobre é “bicho criativo”, que passa por necessidades, trabalha igual condenado, dá um duro danado, enfrenta “cara feia”, mata um leão por dia, mas não deixa a peteca cair e faz piada até da desgraça.
O chinelo arrebentou? Põe um prego. A antena não pega? Enrola com Bombril. Se não tem tu, vai tu mesmo. Não fosse esse alto astral e bom humor, talvez os moradores da Cidade Deus, pobres em situação de miséria, não suportaria enfrentar a realidade dura em uma das regiões mais carentes e afastadas de Campo Grande.
Em uma área invadida, sem estrutura mínima para se viver com dignidade, eles sobrevivem como podem, no improviso, a base de gambiarras. A necessidade obriga e a criatividade, em situações assim, surge de maneira quase instintiva.
No barraco da auxiliar de serviços gerais Nazaré Pereira Moura, de 46 anos, o ventilador de chão foi parar no teto. Desse jeito, o ar que vem do aparelho circula melhor. Só assim ela consegue enfrentar o calor quando chega a hora de dormir.
A casa é tão quente que, de dia, é impossível ficar dentro. As brechas que vem das madeiras mal colocadas pioram a situação, então, a saída, é cobrir as paredes com lençóis ou lonas que, no barraco dela, foram parar no chão, no lugar do contrapiso.
A vela sobre a penteadeira, no quarto, indica que, ali, o pavio e a parafina é um recurso essencial, especialmente agora, que a concessionária de energia elétrica se “revoltou” com os gatos e resolveu cortar a luz de todo mundo.
Quem dera se esse fosse a única necessidade que os obrigam a contrariar as leis. Na favela, as ligações clandestinas de água fazem parte da rotina. Fazer o que, repetem os moradores, em discurso unificado.
“Bom bom não é”, diz Nazaré, sobre morar na Cidade de Deus. Ela chegou ao lugar em dezembro de 2012, junto com outras famílias. “Estava difícil pagar aluguel, essas coisas”, conta a mulher, que mora, na Cidade de Deus, com o marido e um filho de 5 anos.
A história é praticamente a mesma da vizinha, a dona de casa Sônia Crara, de 49 anos. “É Crara, com R mesmo”, reforça a mulher, mãe de Hundergon, de 17 anos, portador da Síndrome de Down, e esposa do mecânico David Valdir, de 49.
A família morava de aluguel, no Jardim Tarumã, mas o proprietário da casa subiu o valor de R$ 350,00 para R$ 500,00 e foi impossível arcar com a despesa. David, que sustenta a casa sozinho, ganha apenas R$ 800,00 por mês. O casal não viu saída e foi parar na favela que, de bonito, só tem o nome. Entraram, primeiro, em uma peça e depois foram ampliando, a medida que ganhavam madeiras e materiais usados.
Hoje, em vista do que tinha, eles vivem em um palácio. Um palácio cheio de gambiarras. Para sair, nos fundos, é preciso abaixar a cabeça. “É que a dona é baixinha”, brinca a moradora, sem deixar de lado o bom humor.
Dona Sônia tem móveis velhos, é verdade, mas ainda úteis. O fogão, por exemplo, funciona direitinho, mas quando o gás acaba ela faz corre para o que funciona à lenha. A pia ela colocou em cima de uma cavalete utilizado em obras de construção.
“Aqui a gente passa muitas dificuldades. Nossa vida aqui é essa. Quando chove molha tudo. Quando está seco, é seco. A gente não aguenta ficar dentro desse barraco. É muito quente.
Quando chove a gente tem que estar levantando o colchão, pondo panela em cima da pia, da mesa. O banheiro mora tudo. A enxurrada passa por aqui tudo”, resume.
Mariana Gonçalves, de 21 anos, uma das primeiras moradoras a invadir a área, adotou a mesma estratégia para lavar as louças. A jovem, mãe de 4 meninas, também se vira nos 30.
“Aqui é tudo improvisado. A fossa nós cavamos lá fora, colocamos encanamento para o banheiro, e para cozinha, na pia. Quando chove, se tem alguma coisa molhando a gente põe o pano, a lona para tampar. A gente vai tirando de um buraco e colocando no outro”, conta.
No barraco da monitora escolar Inês Corrêa, a situação se repete. Ela toma banho de caneco, porque a água tem força para subir para o chuveiro.
A descarga, no banheiro, é com o auxílio de um balde. A mulher se acostumou à situação – e com os improvisos -, mas sonha com um lugar melhor para morar.
“A gente não está aqui porque a gente quer. É porque a gente precisa. Não tem outro lugar para gente ir. As pessoas falam: Ah, é invadido. Vocês fazem gambiarra de água, de luz... Mas a gente não queria estar aqui. Queria estar na nossa casa, pagando também. É muito difícil. As vezes as pessoas não entendem. Falam: ah, é favelado, não sei o que, mas essa é a nossa realidade”, lamenta.