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Comportamento

Na periferia da cidade, dom de benzer é repassado de geração em geração

No Residencial Buriti, Dona Paulina benze muitas crianças e adultos, desde que acorda, até a noite chegar

Willian Leite | 24/06/2018 08:35
O lugar é simples e é onde Paulina recebe as pessoas que procuram pela reza (Foto: Paulo Francis)
O lugar é simples e é onde Paulina recebe as pessoas que procuram pela reza (Foto: Paulo Francis)

Mãe, pai, avó, avô, todos com o mesmo ofício, orar pela cura das pessoas, benzer. Dona Paulina como é conhecida afirma não saber de onde aparece tanta gente procurando pelas rezas feitas por ela, a benzedeira do bairro. “Tem dias que vou dormir muito cansada, mas não nego rezar para quem está a procura de ajuda”.

Aos 71 Anos, já perdeu a conta de quantos já a procuraram para receber as orações, são quase 20 anos benzendo crianças, adultos e idosos. Ela perdeu a firmeza das pernas por conta de uma artrose, mas diz não medir esforços para continuar na lida. “Desde os meus 15 anos que sinto a responsabilidade que o dom me trás. Naquela época, era muito menina e não aceitava muito, mesmo sabendo que essa era minha missão aqui na terra”, explica.

Ainda na juventude, procurou por ajuda em um Centro Espirita e lá foi orientada de que era necessário que praticasse a caridade com o dom herdado dos pais e avós. “Lá foram muito claros comigo, que se eu não praticasse o dom, iria sofrer para sempre com as consequências e não teria paz de espirito. Eu acordava falando as palavras da benzeção e tinha muitas visões durante a noite, via pessoas do meu lado que de repente sumiam, essa sensibilidade espiritual sempre me acompanhou”, conta .

A corumbaense de nascimento mora há 18 anos no Residencial Buriti em Campo Grande, e é numa casinha simples em terreno doado pela prefeitura que a benzedeira, que já passou por 12 cirurgias e depende de muletas para caminhar, tem como lema ser feliz independente de qualquer circunstância. “A felicidade é minha companheira e mesmo com todas as minhas limitações não dou espaço para baixa estima ou reclamações”, dispara.

Nesta longa caminhada, dona Paulina já atendeu vários tipos de pessoas, de espirita a evangélico, e a casa simples virou endereço certo para quem procura por uma prece ou oração em favor da alma ou enfermidade física. “Minha mãe, pai, avó e avô benziam, meu avô por parte de pai Felizardo Ferreira, já falecido, morreu aos 110 anos e até os 100 ainda benzia os bebes das mães desesperadas que o procuravam”, enfatiza.

Por imposição de mãos, ela abençoa quem a procura (Foto: Paulo Francis)
Por imposição de mãos, ela abençoa quem a procura (Foto: Paulo Francis)

Uma cadeira de plástico dentro da cozinha humilde da casa de dois cômodos é o “consultório”. Com uma rama tirada ali do quintal da casa e um copo com água, Dona Paulina faz rezas e orações para aliviar quem precisa. Diferente de outros praticantes da benzeção, ela faz a oração em voz alta e pede proteção aos atendidos com o sinal da cruz.

“Durante a reza, sempre coloco Deus na frente, as frases são sempre as mesmas. Jesus te criou de todo mal te livrou, em nome do Divino Espirito Santo todo mal, inveja, olho gordo , perturbação seja anulado”, e assim Dona Paulina continua a oração que é repetida sempre por três vezes em referência ao Pai, Filho e Espirito Santo.

O dom que passou de geração em geração veio dos pais e Paulina conta que tem uma irmã que também pratica a benzeção. A rotina de quem se coloca com o dom da cura, não é fácil. Ela diz que não gosta de receber as pessoas no fim de tarde, por exemplo, quando a noite está chegando. “Neste horário se eu receber alguém depois do ato me sinto pesada, por isso prefiro durante o dia que assim não contraio energias negativas”, relata.

Mesmo assim, a procura é tanta que às vezes quando se dá conta já está entardecendo e ela nem almoçou ainda. “Tem dias que vem tanta gente que perco a noção do tempo, hoje por incrível que pareça, acho que por conta do frio não veio quase ninguém”, comenta em uma semana de temperaturas baixas em Campo Grande.

Apesar de praticar o costume que existe no Brasil desde o período colonial, Paulina afirma ser Católica praticante. “Na comunidade onde frequento, até o padre sabe que eu benzo, mas ninguém nunca me tratou com diferença, alguns membros da igreja às vezes até me procuram para receberem uma prece”, enfatiza.

Crianças são maioria, por se tratar da sensibilidade e vulnerabilidade delas, as mães quase que semanalmente a procuram. “As crianças geralmente estão com quebrante, mal olhado ou desidratação, peço as mães que tragam por três vezes e logo ficam bem”, declara.

No quintal da casa benzedeira tira ramo para usar no ato (Foto: Paulo Francis)
No quintal da casa benzedeira tira ramo para usar no ato (Foto: Paulo Francis)

Pergunto se a sensibilidade na saúde a faz pensar em parar. A resposta é breve: “Enquanto as pessoas estiverem se sentindo bem por meio de minhas mãos que acredito serem usadas por Deus, com toda certeza do meu coração vou permanecer aqui sempre servindo elas com meu dom”, afirma.

Como não cobra pelos serviços, Dona Paulina não tem uma vida fácil, vive com um salário mínimo de aposentadoria, mora em casa simples, porém ela diz ser confortável. Compra roupas usadas e para garantir um dinheiro a mais no final do mês faz feiras da pechincha em casa.

Nos armários simples de metal, no corredor entre a cozinha e o quarto, ela expõe suas mercadorias. “Muitas pessoas vem aqui comprar roupas, por esses dias andou meio parado. Agora melhorou o movimento”.

Para se resguardar e por vezes fortalecer a fé, a benzedeira mantém ao lado de sua cama um altar com as imagens de santos. Segundo ela, além das poucas vezes que vai a igreja e dos terços que reza em gurpo em casa, é ali que renova as energias. “Sempre oriento as pessoas que procuram que acendam uma vela para o anjo da guarda para que possam estar protegidos dos males que podem sofrer”, finaliza.

Altar no quarto onde dorme é onde Paulina reza e  se fortalece para o dia seguinte (Foto: Paulo Francis)
Altar no quarto onde dorme é onde Paulina reza e se fortalece para o dia seguinte (Foto: Paulo Francis)

Marlei Sigrist é Pesquisadora da Cultura Popular, Presidente da Comissão Sul-Mato-Grossense de Folclore, escritora e mestre em Educação. Ela explica que a prática é antiga e ainda hoje é muito procurada. “As benzedeiras, pajés e outros equivalentes, existem desde a antiguidade. O trabalho deles é rezar por outros para lhes tirar os males que os perturbam. Benzem tudo: pessoas, bichos, coisas, lugares, almas de outro mundo, meles da alma, enfim, tudo mesmo. Têm um conhecimento passado oralmente de uma geração à outra, por isso é uma manifestação tradicional e seus protagonistas são considerados Mestres do Saber Popular”, detalha.

A pesquisadora diz que esse tipo de crença começou em um tempo sem a Medicina. “São manifestações de um tempo em que recorria-se à natureza e ao mundo do sagrado para curar os males que afligiam as pessoas, animais e outros".

Mas nenhuma ciência conseguiu acabar com a fé que sustenta esses rituais até hoje. "Com a evolução dos tempos, apesar da ciência ter evoluído, muitos não conseguindo apropriar-se dela, principalmente os mais pobres, continuaram a recorrer às benzeduras, embora outros ainda que possuidores de maiores conhecimentos e poder aquisitivo também recorram a essa prática. Assim, podemos perceber que o uso dessa prática não está ligada somente à evolução ou não da ciência, poder aquisitivo ou não da pessoa, mas envolve também o campo da fé”, destaca.

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