Pandemia mostrou Campo Grande menos fria do que se pinta
Campo Grande celebra seus 121 anos em meio a uma pandemia. Certamente, o momento mais incomum de sua história.
Campo Grande celebra seus 121 anos em meio a uma pandemia. Certamente, o momento mais incomum de sua história. Apesar de sabermos que se trata de um grave problema de saúde, também é importante olharmos para os ensinamentos que todo este caos nos trouxe e, sim, por mais difícil que possa parecer, campo-grandenses e pessoas de outros estados que abraçaram a cidade nos últimos anos afirmam que aprenderam algumas boas lições para a vida.
Também por conta do isolamento, cada saída de casa se transforma em uma rica viagem por um mundo conhecido, o da nossa cidade, mas que muitas vezes passava despercebido: as ruas, algumas um tanto vazias, destacam os prédios, os monumentos e detalhes que agora ganham muito valor.
No caminho até a padaria onde boa parte da equipe de trabalho costuma almoçar, por exemplo, reparei pela primeira vez o canto de alguns pássaros numa árvore vistosa, de esquina na Rua da Paz. Não fosse o silêncio daqueles dias de quase tudo fechado na cidade, certamente os pássaros continuariam cantando sem que eu percebesse.
“Uma das coisas mais preciosas, e às vezes nem nos damos conta, é nossa liberdade, principalmente a de ir e vir”, explica o fotógrafo e editor do Senhor dos Rolês, Guto Oliveira. Com o isolamento imposto, o campo-grandense teve muitas restrições, inclusive de horários e de visitas a lugares que trazem tanto conforto e paz, como, por exemplo, o Parque das Nações Indígenas.
Com todos os parques da cidade fechados, sobrou tarefa de substituir estes cenários por outros, e assim Guto pode descobrir que há beleza nas ruas, seja no centro ou nos bairros. “Aprendi a valorizar o pôr do sol na rua de casa, as flores no caminho até o mercado, contemplar mais nosso céu sem igual, com o sol majestoso desta capital morena, de clima agradável na maior parte do ano”, descreve.
Da mesma maneira, Guto diz que a pandemia aguçou seu olhar de fotógrafo, ávido por registrar momentos corriqueiros, mas essenciais. “Campo Grande sempre foi palco de flora e fauna exuberantes que, com sua rica arborização, acaba atraindo animais silvestres e aves maravilhosas. Isto já é sabido, mas o isolamento me fez prestar ainda mais atenção neste tesouro, que nos é dado todos os dias”, ressalta o fotógrafo.
Para o antropólogo e professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Guilherme Passamani, 37, a pandemia, em Campo Grande, também desnudou o que temos de melhor e pior. “Desnudou a imensa desigualdade social que assola uma cidade tão rica e, ao mesmo tempo, tão pobre, pois tem sua riqueza concentrada nas mãos de poucas famílias e em regiões tão bem demarcadas da cidade. Nesses momentos, a pandemia foi impiedosa com pobres, não brancos, moradores da periferia e não escolarizados. Àqueles que não figuram nos cartões postais que destacam a avenida central, seus prédios e seu belo parque”.
Como contraponto, Guilherme cita que foram inúmeras as iniciativas de muitas pessoas, populares e anônimas, que, mesmo diante de uma situação trágica, conseguem estender a mão a tantos campo-grandenses em situação de vulnerabilidade extrema. “E aí está o melhor desse lugar que sabe abrir os braços e acolher. Mas que, muitas vezes, não prefere agir assim. A pandemia vem contar, com ênfase, aquilo que muitos já sabemos: uma cidade precisa ser justa, solidária, fraterna e de oportunidades para todos. Caso contrário, todos perdemos”, cita o professor.
Nos primeiros 121 anos, apesar de exemplos de solidariedade que ganham o coração, parece que a desigualdade, o individualismo, a arrogância e a prepotência também ganharam espaço por essas bandas, segundo o professor. “Acredito que, daqui pra frente, diante dos imponderáveis da vida real, tão bem personificados na pandemia, ganhamos uma nova chance de fazer com que a “morena” mais frajola do centro-oeste possa ser, de fato, uma cidade para todos nós. Nós podemos fazer diferente, colocando, de fato, as pessoas em primeiro lugar”.
Campo Grande não é fria como se pinta – “Quem nasce em Campo Grande é um sujeito frio, de poucos amigos.” Essa frase, sempre incomodou o escritor André Luiz Alves. “Muito mais por amor à minha cidade do que propriamente por constatação contrária”, acrescenta.
Somos frios, indelicados, insensíveis com os de fora? Muitas vezes ele engoliu a resposta. Então veio a pandemia e o confinamento: ficar em casa vendo televisão ou lendo um livro, resultou num tormento. Tudo que é proibido se torna tormentoso.
“A saudade dos amigos e dos familiares bateu dolorida no peito, mostrando que a tão decantada frieza dos filhos da cidade não é tão dura assim. A janela se tornou o último refúgio dos aflitos. Nas poucas vezes que me arrisquei a sair de casa, as máscaras tapavam os rostos, quase nenhum sorriso, rugas de angústia e preocupação: e agora? Até quando?”, se questionou.
Desde o início de pandemia, a ideia do fim do mundo o abraçou apertado. Durou pouco tempo, logo o medo do vírus abrandou e restou a busca por alguma forma de imunidade. Logo André percebeu que antes era preciso sentir humanidade. E nessa busca, acabou se encontrando.
“Senti-me um privilegiado por precisar de tão pouco, ter os meus filhos morando comigo, o meu neto, a coragem contagiante da minha mulher. Descobri coisas pequenas, alguns valores que julgava perdidos, ou inexistente: a capacidade de enxergar os mais necessitados e a necessidade do calor de um aperto de mão, de um abraço, da conversa jogada fora em volta de uma churrasqueira, essa coisa tão própria do campo-grandense”.
A verdade é que para Guto, Guilherme e André, o amanhã virá, setembro trará o colorido dos ipês e a cidade, forte desde a criação, sobreviverá ao vírus. Mas, talvez este seja o legado desta pandemia: aprender a dar valor àquilo que nos é disponibilizado cotidianamente.
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