Para quem só se escondia no quarto, compreender deficiência foi liberdade
Julia, Alan e Maycon contam como um ambiente de trabalho diverso e inclusivo pode gerar transformações
Três histórias que falam sobre alegria, tristeza, lutas e conquistas. Vencer foi, na sensação de Alan, ter vontade de sair do quarto. Para Julia, alegria é não ter vergonha da deficiência. E para Maycon, conquistas são andar bicicleta e comemorar o primeiro emprego. O sorriso presente nos três jovens é a prova do quanto são capazes. O trio se conheceu no frigorífico, porque estão no quadro de funcionários PCDs (Pessoas com deficiência). Juntos, eles somam anos entre preconceito e inclusão, e agora lutam pelo respeito sincero às pessoas com deficiência.
Quando se pensa em contratação de PCDs, há questões que envolvem acessibilidade e inclusão que, muitas vezes, são pouco discutidas dentro das organizações. Não é nenhuma novidade que diversas empresas contratam meramente para cumprir a legislação, problema que é fácil de identificar conversando com deficientes que há muito tempo tentam uma vaga no mercado de trabalho. O motivo? Falta inclusão.
Nesta semana, se comemorou o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, no dia 3 de dezembro, data que busca ampliar a inclusão dessas pessoas na sociedade e que levou o Lado B até as histórias de Júlia e Alan, que há mais de um ano trabalham juntos, e de Maycon que passou recentemente em um processo seletivo e será contratado no início de 2020.
Os três são deficientes intelectuais e fazem parte da primeira unidade do frigorífico JBS em Campo Grande. Durante o intervalo, contaram como um ambiente de trabalho diverso e inclusivo podem gerar transformações tanto no espaço corporativo quanto na vida pessoal de um deficiente.
A mudança foi significativa na vida de Julia Beatriz Araújo Coronel, de 20 anos, que antes de ser contratada sentia vergonha de falar da própria limitação. “Eu nunca quis aceitar a minha deficiência. Não queria trabalhar para não falar que era deficiente e, na escola, durante muito tempo, só a diretora sabia”, lembra.
Foi uma prima que falou das vagas de trabalho para deficientes na unidade. Julia confessa que não aceitou no início. “Foi difícil”, desabafa. “Eu me sentia incapaz e o mundo me fez acreditar que eu era assim”.
Com o tempo, o apoio da família e a vontade de ajudar em casa fizeram com que Julia pensasse diferente. “Primeiro porque minha mãe que nunca desistiu de mim e nem deixou de me cuidar”, diz. “Lá em casa, também é complicado, temos gastos. E eu senti a necessidade de ajudar”.
O treinamento e a capacitação foram partes importantes na transformação de Julia. “Eu me senti mais responsável e capaz de ver o mundo de uma forma diferente. Porque quando nós deficientes só ficamos em casa não vemos a realidade. Também deixei de me subestimar e de ter vergonha de falar da minha deficiência”.
Hoje, a etapa de capacitação e treinamento, a fim de que deficientes se desenvolvam dentro da empresa, segundo Julia, foi alcançada. “No começo eu não sabia muita coisa, mas aprendi, tenho melhorado e sinto que sou capaz de crescer no trabalho”.
Quem conhecesse Alan Douglas Gonçalves, de 28 anos, há poucos mais dois anos “se assustaria”, diz ele. “Eu tinha pânico de sair de casa. Eu tinha preconceito. Eu tinha medo até de pegar um ônibus para ir a algum lugar”.
Os dias eram dentro do quarto, recorda. “Eu não vivia, entrei em um estado que só ficava dentro do meu quarto, nem com a minha mãe eu conversava”.
Subestimado pelo mundo, Alan também desdenhou a própria capacidade de enfrentar a vida com a deficiência. “Achava que eu não dava conta, eu escutava das pessoas que não tinha como sair sozinho, que iria sofrer preconceito, e assim eu fui me fechando”.
Alan, que mal conseguia falar por causa da dificuldade com a leitura, também indica que o trabalho novo foi decisivo para uma nova relação com a vida. “Eu cheguei aqui há um ano e oito meses sem falar direito. Falava poucas palavras, eu não lia nada, agora estou melhorando”.
Ele se orgulha de ter a liberdade que até os 25 não havia experimentado. “Hoje eu pego um ônibus e ando pela cidade sem medo. Se eu me perder, ligo para a minha mãe e aviso. Mas não tenho mais medo”.
Para ele, o maior desafio para a inclusão está na mudança de cultura e no reconhecimento de que a pessoa com deficiência é uma profissional como outra qualquer. “Isso ainda é muito difícil na cabeça das pessoas, acham que nós deficientes temos que ficar excluídos e isso não é verdade. Com capacitação a gente consegue. Talvez, possa ser um processo mais difícil ou demorado, mas é preciso ter oportunidade”.
Além disso, tem a questão da escolaridade, que não é só falta de acesso para chegar à escola, é a falta de acesso na escola, que faz com que muitos deficientes tenham dificuldades e sejam prejudicados de forma expressiva. Exemplo disso é o Maycon Davidson da Silva Rodrigues, de 19 anos, que sofreu muito com o pouco preparo dos professores com alunos deficientes intelectuais. “No começo, quando ele foi diagnosticado com a deficiência, foi muito difícil na escola. Vivíamos no interior e não havia nenhum preparo”, conta o pai Marcelo Rodrigues Vieira, de 41 anos.
Ainda com dificuldades para falar, Marcelo é que responde pelo filho. Borracheiro autônomo, ele diz que se mudou de uma fazenda para Campo Grande a fim de garantir melhores condições ao filho deficiente. “Na fazenda não tinha acessibilidade para nada”, lamenta.
Hoje, o sorriso no rosto e o brilho nos olhos são comemorações por ver o filho pronto para encarar o primeiro emprego. Maycon foi recrutado e formou-se na 4ª turma da Oficina de Trabalhos Experimentais da JBS, um projeto voltado à inclusão de pessoas com deficiência e que busca oferecer capacitação para o mercado de trabalho, e emprego da mão de obra formada nas plantas da empresa.
“Estou muito feliz por ele. Nós temos uma vida simples, mas eu acredito que independente disso a gente tem que tentar lutar nessa vida”, diz o pai. Assim como aconteceu com Julia e Alan, Maycon também foi subestimado por muitos. “Tem gente que julga eu querer que ele trabalhe, mas não acho justo deixá-lo em casa sem nada. Eu tenho que acreditar no meu filho”.
Na simplicidade das palavras, o pai ensina ao filho sobre prestar atenção no que os colegas de trabalho e seus superiores falam. Mas em caso de dificuldades, mostra como não ter medo de pedir ajuda. “Eu falo, ensino aquilo que eu sei da vida e sei que ele entende. Ele está feliz, eu estou feliz e quero acompanhar cada passo dele aqui dentro”.
Além da conquista do primeiro emprego, os olhos do pai enchem de lágrimas ao lembrar o primeiro desafio vencido que ele faz questão de contar. “Ele aprendeu andar de bicicleta, fui que ensinei e isso me deixa emocionado”, finaliza.
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