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Comportamento

Pastel de Tantino Ladário não tem mais, e Nelson ficou órfão do primo

Programa dominical encontra-se no passado, e agora só resta a saudade dos encontros recheados de boas conversas, tal como o pastel

Raul Delvizio | 28/08/2020 06:23
Tantino em seu ofício de pasteleiro. Barraca era preparada na frente de sua casa. (Foto: Arquivo Pessoal)
Tantino em seu ofício de pasteleiro. Barraca era preparada na frente de sua casa. (Foto: Arquivo Pessoal)

Nelson tinha um ritual: acordava cedo aos domingos, fazia uma breve caminhada pelas ruas de Ladário e já avistava a barraca do Tantino. Era ele quem preparava pastéis como nenhum outro, baratinho a R$ 2. Mas tal como a última mordida no salgado, a vida levou o primo mais cedo do que se esperava. Não tem mais pastelaria, e a liturgia dominical agora está a cargo da memória. O que ficou foi a saudade desse eterno ladarense.

Feliz, Nelson com o primo ao fundo (de chapéu) atendendo cliente na época de pandemia. (Foto: Arquivo Pessoal)
Feliz, Nelson com o primo ao fundo (de chapéu) atendendo cliente na época de pandemia. (Foto: Arquivo Pessoal)

“Ele deixa como marca sua autenticidade, um cara que escolheu um estilo de vida que valia a pena ser vivido”, falou o jornalista Nelson Urt. Ele escreveu uma bela postagem em rede social homenageando o primo favorito. “Eu vivia querendo imitar sua valentia, sua facilidade para conquistar garotas, a fama de garanhão, o jeito despojado como dirigia seu velho jeep e o modo desbocado de tratar pessoas inconvenientes. Ele era meu alter ego”, descreveu.

Como um bom leonino, Tantino tinha uma energia ímpar. “Mesmos aos 69 anos ele se comportava como um jovem, era cativante, tinha uma alegria de festa. Em sua simplicidade, ele era o que a vida tinha de melhor”, comentou.

Tudo que acontecia no município que é Pérola do Pantanal passava por Tantino. Ele sabia de tudo. Segundo Nelson, o primo gostava de um bom papo, principalmente sobre política – resquícios do tempo que foi vereador e presidente da Câmara de Ladário. “Ele tinha o palavrão como retórica, e assim expressava suas críticas efusivas contra as falhas da administração pública, seu alvo predileto”.

Todo domingo era a mesma coisa: Nelson e Tantino juntos, em mais um "dia de pastel". (Foto: Arquivo Pessoal)
Todo domingo era a mesma coisa: Nelson e Tantino juntos, em mais um "dia de pastel". (Foto: Arquivo Pessoal)

Mesmo durante a pandemia, a clientela fazia questão de conversar com ele enquanto esperava o pastel para viagem. “O carinho era tanto que as pessoas às vezes comiam por ali mesmo só para continuar o bate-papo”. Poderia até ter sido de covid-19, mas Tantino fechou os olhos em casa quando seu coração parou de bater – isso em uma manhã fumacenta em Ladário, três dias antes de completar seu aniversário de número 70.

Dia de pastel – Assim como em Campo Grande as pessoas procuram pelo Mercadão, o programa de Ladário era a pastelaria de Tantino. “Ele até brincava: ‘Nelson, tem gente que só almoça o meu pastel!’. Domingo pode até ser dia de macarronada em família, mas por aqui também era do pastel especial dele”. Agora não existe sucessor para preencher o vazio que ficou na rotina.

Sempre criativo, Tantino também preparava um pastel de bacalhau pantaneiro, feito com filé de peixe armal do rio Paraguai. (Foto: Arquivo Pessoal)
Sempre criativo, Tantino também preparava um pastel de bacalhau pantaneiro, feito com filé de peixe armal do rio Paraguai. (Foto: Arquivo Pessoal)

Uma vida inteira – Essa narrativa poderia ir longe, com todas as histórias do tempo vivido em que Tantino foi fuzileiro naval na Marinha ladarense, depois se aventurou como cozinheiro em navios mercantes que cruzavam o rio Paraguai ou ainda na época que foi dono de bar. Nelson bem sabe o que o primo fez ou deixou de aprontar. Mas como o ciclo natural da vida é a morte, o jornalista encerra: “com cinco filhos em dois casamentos, Constantino Demétrio da Costa Urt deixa, é claro, um rastro de histórias, paixões e saudades”. Leia abaixo o texto de Nelson na íntegra:


Tantino, pastéis e paixões

Ele, do signo de Leão, faria 69 anos neste dia 14 de agosto, sexta-feira. Mas o coração (e não o covid) quis levá-lo três dias antes, na manhã quente e fumacenta desta terça em Ladário, a Pérola do Pantanal. Tantino morreu de enfarto ali mesmo onde morava e fazia os pastéis mais deliciosos da região – a receita caseira vinha da mãe dele, dona Edith. Pastéis crocantes, com recheio de carne moída e batata cozida bem temperados. Para esta semana estava preparando, sob encomenda, o pastel de bacalhau pantaneiro, feito com filé de peixe armal do rio Paraguai, que margeia nossa cidade. Tantino tinha o palavrão como retórica – era assim que conseguia expressar seus sentimentos e críticas leoninas contra as falhas da administração pública, seu alvo predileto. Falava de cátedra, pois havia sido vereador e, por um período, presidente da Câmara de Ladário. Não se intimidava quando recebia na sua barraca a visita de autoridades – vereadores, ex-prefeitos, secretários de governo que por ali passavam não só em busca dos apetitosos e fumegantes pastéis, mas também de popularidade, status, enfim, os votos. Afinal, comer pasteis do Tantino era um ritual como ir a São Paulo e saborear uma pizza no bairro italiano do Bixiga. No auge da juventude foi fuzileiro naval e depois ainda se aventurou como cozinheiro em navios mercantes que cruzavam o rio Paraguai e como condutor de turistas no Pantanal. Também dirigiu o Bar do Tantino, onde costumava elaborar pratos sob encomenda – nunca comi uma peixada de pintado tão deliciosa como a dele. Costumava ainda oferecer cabeça de boi assada. Era mandão, impulsivo, explosivo, mas parecia um cordeirinho quando conversava com sua irmã preferida, a Helô Urt – dela até aceitava receber ordens. Com cinco filhos em dois casamentos, Constantino Demétrio da Costa Urt deixa, é claro, um rastro de histórias, paixões e saudades. Meu primo favorito também era meu alter ego – eu vivia querendo imitar sua valentia, sua facilidade para conquistar as garotas, a fama de garanhão, o jeito despojado como dirigia seu velho jipe e o modo desbocado de tratar pessoas inconvenientes. Deixa como marca a autenticidade, o cara que escolheu o estilo de vida que vale a pena ser vivido.

– Nelson Urt


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