“Que o preconceito pare”, diz mãe de dentista vítima de homofobia
Dor tomou coração de uma família que vai deixar a casa para recomeçar, mas que também cobra justiça
“Eu não quero que minha filha seja vacinada por esse tipo de gente, um viado...” A frase violenta, que ficou conhecida após denúncia de caso de homofobia na fila de vacinação em Campo Grande, não foi exatamente o que matou o dentista Gustavo Silveira Lima, mas dilatou o “buraco” que ele tinha dentro do peito desde o diagnóstico de depressão aos 20 anos. Essa é a análise da família, especialmente da mãe do dentista, Tânia Mara dos Santos Lima, de 55 anos, que viu de perto a dor do filho em não ser aceito.
Destroçada depois da morte de Gustavo, que desistiu de viver aos 27 anos, ela lembra do filho corajoso. “Quando ele expôs sua vida, foi um ato de coragem, mas ele não estava suportando tantas frustrações. Eles [LGBTQIA+] tentam ser perfeitos em tudo, porque a sociedade não os aceita. Então, que essa atitude dele, de se expor, seja a luta de outras mães, de outras famílias, de todo tipo de pessoa”.
A mãe, ainda em aparente estado de choque, diz que tentou de tudo, mas foi derrotada pela depressão. “Eu perdi o amor da minha vida, o cara que me ouvia para sair e para trabalhar, hoje, eu estou sem rumo, sem para onde ir. Achava que eu ia conseguir, mas eu não consegui tirar ele desse momento”, desabafa.
Abraçada ao esposo e com olhos cheios de lágrimas, ela reforça o pedido. “O que a gente pede é que ela [mulher que cometeu homofobia] possa responder judicialmente. E que esse preconceito pare de existir, isso mexeu muito com a cabeça do Gustavo”, finaliza.
Na quarta-feira da semana passada, 13 de outubro, Gustavo saiu de casa cedo e foi trabalhar. Parecia um dia normal, segundo a família. Mas a madrugada chuvosa de quinta-feira (14) marcou o desfecho da história dele.
A dor agora tem endereço. Por isso, pai, mãe e irmão viajaram para ficar juntos aos familiares no interior e querem entregar a casa alugada. “Vivemos coisas boas aqui, mas agora ela traz só lembranças ruins”, diz o irmão Adriano Lima, de 34 anos, sobre o lugar onde o dentista morreu.
Foi ele quem encontrou Gustavo já sem vida dentro de casa. “Eu costumava ir ao quarto dele para ver se estava tudo bem. No último ano, que foi muito difícil, eu dormi algumas vezes com ele por causa da depressão”, contou.
Ainda no velório, Adriano ouviu de uma das amigas do irmão uma história que poucos sabem. “Uma amiga dele, que nós conhecíamos e que era muito parceira dele, me contou que ele conseguiu tirá-la da depressão em um momento difícil. Aquilo me emocionou muito, porque o Gustavo era muito querido, uma pessoa especial”, descreve o irmão.
Quando a reportagem chegou a casa da família, a primeira coisa que um dos familiares pediu para não mencionar era sobre a realidade da morte de Gustavo. No entanto, o próprio pai e o irmão conduziram a narrativa que traz à tona a dor que invade uma família que perde o filho no suicídio.
Como parte da superação e da justiça que eles esperam alcançar um dia, nem pai e irmão pouparam de falar da vida de Gustavo, o que o empurrou para dias sem cores e uma dor que nem eles sabem mensurar. Para o pai, um dos fatores é muito claro: homofobia – termo que define a discriminação de pessoas que sentem atração pelo mesmo gênero e que também é considerado crime no Brasil desde 2019.
“Meu sentimento é de tristeza, quero que descubram quem é essa mulher, porque ela fez isso com meu filho? Está doendo muito”, disse o pai, o aposentado Milton Silveira Lima, de 62 anos, enquanto enxugava as lágrimas e apertava as mãos contra o peito na tentativa de recuperar o fôlego.
Até agora, a família não sabe a identidade da pessoa que atacou Gustavo com palavras na fila da vacina, o que o pai considera que foi gatilho para a instabilidade emocional do rapaz.
O irmão acredita que o caso de homofobia que teve repercussão nacional potencializou a dor de Gustavo. “Ele ficou mais nervoso, porque ele queria descobrir quem era essa pessoa. A gente explicou que a Justiça é lenta. Foi um momento em que a gente refletiu muito. Já ele acreditava que era um peso para todo mundo”, conta.
Gustavo sofreu preconceito desde a infância, menciona o irmão. “Ele nasceu numa cidade do interior, uma cidade de pessoas mais simples, com a cultura mais tradicional e ele cresceu com poucos amigos na escola, que já falavam sobre ele, mas mesmo assim, ele era muito inteligente. Se não dava certo em uma escola ele ia para outra”.
O sonho de Gustavo era cursar Medicina, mas ingressou em Odontologia numa faculdade particular e se mudou para Campo Grande logo após terminar o Ensino Médio. Um ano depois, houve prova de transferência para a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e ele conquistou a vaga.
“Ele se dedicou muito, estudou muito, mesmo assim, tinha a depressão, ansiedade, insônia, o preconceito”, conta o irmão. Foi nesse período que a doença se manifestou e toda família se envolveu com o tratamento de Gustavo.
“A depressão apareceu quando ele tinha 20 anos, quando veio para se expor, ser quem ele era, porque nem para nós ele ainda tinha se aberto. Mas falamos que iríamos aceitar ele da mesma forma, que ele era a mesma pessoa. Ele teve apoio nosso, a gente sempre o respeitou, só que a comunidade, a sociedade, muitas vezes, não”, narrou Adriano, também entre lágrimas.
Houve um ano, segundo Adriano, que o irmão quis desistir da faculdade, por causa das coisas que escutava, do preconceito que o machucava e potencializava a depressão. “Viemos para cuidar dele, ele passou 2020 dormindo. Que agonia ver o irmão só dormindo. Eu chegava e queria ver ele acordado, assistindo TV e ele estava sempre dormindo”.
Foi antes do Ano Novo que houve a primeira tentativa de suicídio. O preconceito parecia arder os olhos de Gustavo, que embaçavam seus motivos para seguir em frente. Mas o tratamento, o acompanhamento psicológico e a família neste início de ano foram recomeço para o dentista.
“A gente falou que o ano 2021 seria diferente. Não deu outra. Do nada, ele começou a estudar para a prova de residência e passou. Foi um orgulho para todos nós. Fez especialização em harmonização facial. Cuidou como ninguém dos dentes da família. Mas quando saiu a vacinação, foi o auge da alegria dele”.
A chegada da vacina contra covid-19 para o profissional de saúde significou esperança depois de um ano difícil. Foi quando surgiu oportunidade de participar da vacinação em um dos drives da Capital, o Albano Franco, como voluntário.
“Ele chegava da vacinação muito feliz, era recompensador, ele contava as tampinhas da vacina para ter noção de quantas pessoas ele vacinou. Quantas pessoas ele pode ter salvado naqueles dias?”, questionou o pai.
Por isso, para Milton e Adriano, o sentimento que navega em meio à dor também é de revolta. “É revoltante você estar na posição de salvar vidas e passar pelo o que ele passou. Ele queria que isso [pandemia] terminasse logo, que essa doença acabasse”.
Mas o crime ocorrido na fila da vacina desestabilizou Gustavo, diz o irmão. “Após esse episódio, foi bem triste, estarrecedor, ela o chamou de viado, apontou o dedo para ele, disse que não seria atendida por aquele viado”, continua.
Embora tenha recebido apoio psicológico, ido à mídia junto com a mãe denunciar o crime, Gustavo passou a tomar medicações e ter crises ansiedade. “Ele comentou que tinha medo quando um carro entrava, mesmo assim ele quis voltar a vacinar”, menciona o pai.
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