“Querido no Pedrossian”, Valentim deixou cemitério de geladeiras
Ele era uma das figuras mais antigas do bairro; agora, deixou à esposa Beth um cemitério de peças e geladeiras
Valentim Balbuena Neto era o conhecido mecânico de refrigeração e máquinas de lavar roupas no Parque Residencial Maria Aparecida Pedrossian. Sempre prestativo, já ajudou muita gente na emergência sem nem cobrar pelo serviço. "O que eu não arrecado Deus há de me retribuir", costumava dizer.
Ele, que chegou no bairro em janeiro de 1983, há 3 dias foi obrigado a se despedir deixando muita coisa para trás: a esposa Beth, seus três filhos e quatro netos, a devoção em Nossa Senhora, a fome de churrasco (nada de carne moída!) e a paixão pelo que exercia profissionalmente. Isso sem falar de toda a sua oficina. Até o radinho de pilha ficou ligado a ecoar sobre o "escritório". Quem sabe naquela bagunça de peças e mais peças, do cemitério de máquinas a esperarem por conserto, será possível encontrar de surpresa seu Valentim com uma chave de fenda na mão e na outra um terço?
"Ele era muito religioso. Todo dia seguia seu ritual: acordava bem cedinho, ia para o banho, tomava o café da manhã e já se dirigia à oficina, onde de lá rezava o terço matutino. Era um devoto fervoroso de Nossa Senhora, e começa agradecendo a vida e as coisas que tinha à ela", descreve Elizabet Lemos de Moraes Neto, 61 anos.
Em tempos de pandemia, é comum imaginarmos a covid-19 sendo a culpada por tirar a vida de Valentim. Mas foi um derrame no baço que acabou se confirmando como o diagnóstico final. A questão, entretanto, é que devido a lotação no sistema de saúde devido ao novo coronavírus custou a garantir o leito que precisava. O atendimento seguiu o protocolo médico, porém a situação do mecânico tinha pressa. Em 1 semana, entre exames, medicamentos para dor e tratamentos paliativos não-cirúrgicos, a gravidade do quadro falou mais alto.
"No sábado retrasado ele havia sentido muita dor abdominal. Passamos três vezes no Hospital Cassems, porém não tinha como interná-lo. Só conseguimos leito na última quinta-feira e na sexta houve transferência para o Proncor. Lá, ele conseguiu uma vaga na UTI, porém já era tarde", recorda Beth. Nisso, Valentim estava direto na morfina por não aguentar de tanta dor. Estava enfraquecido. Com a situação, seus rins foram comprometidos a ponto dele precisar de uma diálise. Acabou passando mal durante a sessão e, na sequência, sofreu uma parada cardíaca.
"Nem sei se podia, mas passei a mão no meio 'véio' e ele ainda estava quentinho. Fiquei um tempinho com ele sentindo seu calor, e meu coração em paz. Foram 40 anos de casamento ao lado daquela pessoa que só fazia o bem. Ainda vivo, ele me disse que quando eu estivesse doente seria a vez dele de cuidar de mim porque eu era 'sua vida'. Mas agora que ele se foi, o oposto é a verdade", diz.
A morte de Valentim pegou todo mundo de surpresa. Aos 70 anos, ele tinha uma saúde de "ferro" e era uma pessoa muito ativa. Não só por causa da atividade profissional que praticava – de lá pra cá a "carregar" geladeiras –, mas sempre era o típico avó "coruja" que aprontava diversas brincadeiras com os netos.
"E se eu te contar que ele vivia dizendo 'não me arrumem neto' aos meus filhos? Mas em 2006 veio o primeiro e, nossa! Virou maior xodó do Valentim. Tanto é que ele fazia questão de ir buscar na escola só para poder ver o seu menininho", relata a esposa.
Conhecido no bairro, Valentim era uma pessoa espirituosa. Sempre alegre, cumprimentava "geral" e detestava quem não o respondesse. Segundo Beth, o marido tinha um jeito simples de viver. "'Problema é para ficar em casa e não levar à rua para passear', costumava me dizer". Nos atendimentos, o mecânico fazia o serviço com um sorriso no rosto.
"Seja rico ou pobre, às vezes nem cobrava do cliente pelo trabalho realizado por ter sido 'rápido' ou 'fácil' demais. Sua inocência em ver o lado bom de todos até me irritava às vezes, mas na realidade era a parte que mais amava. Costumava ensinar a mim e aos nossos três filhos que é preciso fazer o bem enquanto ainda se está vivo, lição que todos nós aqui em casa aprendemos por meio do seu exemplo", fala Beth.
Valentim não era preguiçoso nem pão duro. No bairro, ajudou no que pudesse para a construção da igreja que até seu filho mais velho crismou. "Era uma pessoa colaborativa que simplesmente fazia. Vivia ajudando e não deixava para o dia de amanhã. Já teve vezes de parar o trabalho só para dar carona a um conhecido ou fazer companhia a um amigo na fila de pensionistas", relata a esposa.
Corumbaense, foi na atividade de mecânico que se encontrou e, por não ser instruído, acabou por ser autodidata. "Tudo que era sobre refrigeração ele lia. Inclusive, amava ler, mesmo na dificuldade. O ofício ele aprendeu a mexer sozinho e até essas máquinas mais modernas, tecnológicas, ele já sabia consertar graças estar sempre renovando os estudos".
O que começou com um "puxadinho" do lado de casa, na década de 80, acabou por virar a oficina e "escritório" de Valentim anos mais tarde. Em endereço há pelo menos 12 anos, o espaço próprio era perto de casa e só ele se encontrava na bagunça. Além do rádio que deixou ligado e a esposa não teve coragem de tirar da tomada, o marido vivia rodeado de geladeiras, peças mecânicas e até pé de graviola e goiabeira.
"Mas não foi só isso que ele deixou… além da saudade, é claro, dos familiares e amigos aqui que cultivam um carinho por ele, meu 'véio' deixou para trás o galo Garnizé lá na sua oficina. Todo dia agora eu acordo e vou de comer para o bichinho. Isso até o dia que ele também se for, né?", finaliza a viúva.
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