Silêncio, choro e luto Kadwéu: morreu o cacique Ambrósio
Na ultima terça-feira (4) morreu um dos grandes caciques de Mato Grosso do Sul, Ambrósio da Silva
Silenciem as flautas, tirem-se as pinturas e adornos do corpo, dispam-se das alegorias pois é hora de recolhimento, choro, tristeza e luto. Nessa ultima terça-feira do mês de maio (dia 4) morreu um dos grandes caciques do povo kadiwéu Ambrósio da Silva. Filho do antológico cacique João Príncipe que marcou profundamente a história dessa nação Indígena. João Principe, o pai, morreu na década de 90 picado por uma cobra boca de sapo. Se tratou fazendo uso de ervas medicinais e se negou ao tratamento na cidade. Ambrósio, o filho, morreu de Covid 19, aos 70 anos, após se infectar num hospital de Campo Grande onde estava internado para tratamento de problemas no coração.
Conheci o grande guerreiro e sua familia quando repórter da TV Morena. João Príncipe, Ambrósio, seu irmão Martim da Silva (também já falecido). Eles tinham ainda mais duas irmãs Sandra e Saturno a mais velha, e o irmão caçula,
Adailton, filhos de seu João Príncipe com dona Lair Pinto. Minha relação com as lideranças Kadwéus se iniciou, quando fui à aldeia São João a trabalho para produzir uma reportagem sobre a rebelião na Reserva Kadwéus contra os arrendatários de pastos, na década de 80. O material ganhou espaço no Jornal Nacional e no Fantástico.
O histórico acordo de retomada da reserva pelos Kadiwéus se deu após a nossa equipe de reportagem, funcionários da Funai e da Policia Federal terem sido feitos reféns pelos índios, até que o conflito fosse resolvido. Na época, costuramos um acordo com o Governo Brasileiro, através da Funai e do Governo de Mato Grosso do Sul, administrado então por Wilson Barbosa Martins.
Corria os anos 1980 e as tensões escalaram perigosamente com mais de 1,8 mil invasores dentro da reserva — resultado da "vista grossa" dos militares. Ao pé da Serra da Bodoquena, no norte da reserva, Kadiwéus prepararam-se para a guerra contra os arrendatários, inclusive com denúncia de participação de funcionários da Funai.
A tensão diminuiu em 1985 por meio desse acordo de paz que teve também a participação de figuras como Mário Juruna - o primeiro deputado federal indígena do Brasil, o índio Terena Lisio Lili, na época dirigente estadual da Funai, entre outros, sobre os olhos da opinião pública nacional.
Essa história, bem como seus personagens, está registrada nas imagens da reportagem tendo no comando da rebelião os três históricos personagens (o Cacique pai, e os dois filhos , Ambrósio e Martim),
Com a morte de Ambrósio desaparecem uma das mais significativas lideranças do Território Indigena Kadwéu, hoje representada por cerca de 1.600 indígenas.
A terra dos kadiwéus remonta ao segundo reinado, quando o imperador Dom Pedro II doou a área como contrapartida pela participação dos indígenas na Guerra do Paraguai. Abrange áreas no Pantanal e no Planalto da Serra da Bodoquena, no oeste do Estado. É a maior reserva indígena do Pantanal; o Território Indígena Kadiwéu (TI Kadiwéu) e possui 538 mil hectares. O território sofreu com o grande número de incêndios em 2020, foram 247,3 mil hectares queimados, 45,9% área total, até o fim de novembro, segundo dados do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Lasa-UFRJ).
Ambrósio da Silva era um diplomata. Um homem alto, elegante e discreto. Não atuava mais como cacique e foi um dos mobilizadores para criação da Abink (Associação dos Brigadistas Indígenas da Nação Kadiwéu), em dezembro do ano passado. Sua importância e legado se revela na emocionante manifestação de Examelexe Bení Kadwéu, conselheira de outra importante Associação da região e na qual Ambrósio da Silva era o Presidente, a Associação das Comunidades Indígenas da TI Kadiwéu (ACIRK).
A jovem dirigente indígena revela uma premonição de despedida do grande líder sobre sua morte e lhe presta uma homenagem na língua de origem: "o mestre Ambrósio da Silva foi para a morada eterna. Nosso líder a quem devemos a honra, de acompanhar em algumas agendas. Na última reunião, nos pediu que ficássemos preparados, pois logo iríamos ficar "desacompanhados" dele. Nos pediu para cuidarmos de tudo que nos pertence, o território e o acervo de nosso povo que é a nossa riqueza cultural."
Bení Kadwéu em outra fala com ele diz: "que ele seria um líder insubstituível, uma figura que nos faria muita falta, aquele líder de muitas histórias e boas maneiras no agir e no falar, que sabia liderar com sabedoria e tamanha inteligência, e nobreza e que nobreza ele tinha! Estamos inconsoláveis e nossos anciãos, a quem ele tratava como niwotagodepodi, (meus senhores) também.
O povo Kadiwéu em luto manifesta: "Banagha adiwikodeni niwaagodi, ghodamipi onibeotaghagi, digoida miniwatagha Aneotedoghoji."
(Muito obrigada meu senhor, nossos ancestrais estão te esperando na casa do senhor Deus no céu), finalizou.
Ambrósio é mais um dos grandes amigos que fiz em Mato Grosso do Sul. Ele morava em Bonito com sua esposa, a Lira; a companheira de mais de cinco décadas o deixou em 2020. A morte de Lira com quem cultivou uma das mais belas histórias de amor e companheirismo o deixou "amuado", o luto bateu a sua porta e ele o recebeu.
O aniversário de 80 anos de Lira comemoramos no Hotel Nacional, "a casa" de Ambrósio e da Lira em Campo Grande e palco de reuniões das lideranças Kadwéus na capital. Sempre nos encontrávamos lá para uma boa prosa.
Ambrósio da Silva era índio guerreiro e grande intelectual. Gostava muito de ler e tinha por diletantismo á literatura. Nos encontrávamos, também, nas Feiras Literárias de Bonito, onde ele era um fiel frequentador; lembro tê-lo visto comprar pelo menos uns 15 livros.
Ambrósio como cacique foi sempre generoso, mas bravo e determinado na defensa dos interesses de seu povo. Líder político e espiritual, era um grande conhecedor da história do mundo, de sua gente, dos cantos, de todo o universo de uma língua que esta em risco de extinção. A morte de Ambrósio significa a perda substancial de boa parte da linguagem kadwéus que ele dominava com maestria e conhecimento.
O ano de 2021 esta sendo devastador para brancos, negros, amarelos, indígenas... especialmente para os indígenas mais desprotegidos desse vírus. E, cada vez mais, fica explícito e atordoante o efeito epidistemicida que acompanha as mortes decorrentes do Covid 19.
Nesta homenagem reverenciamos muitos outros anciãos e anciãs indigenas ( Eliseu Lili, outra grande liderança Terena, também morreu de Covid 19 e outras etnias distribuídas pelo país) que também perderam a vida. Ambrósio estava consciente dos riscos terriveis da pandemia que levou seu povo a suspender as festas tradicionais anuais.
Levado por seu sobrinho Adeilson da Silva de Campo Grande para ser sepultado na reserva Kadwéu, seu corpo foi recebido na entrada da aldeia, já tarde da noite desta última terça-feira, pelo Cacique Ciriaco Ferraz e centenas de patrícios que liderou.
Por conta dos protocolos do Covid, não teve nenhum ritual em seu enterro na Aldeia Alves de Barros, onde se criou. Restam a lição deixada por ele e o reconhecimento de seu povo resumido na lembrança de uma anciã representando sua nação: "Jamais esqueceremos a sua luta. Manter a nossa cultura para nunca perdemos nossa identidade. manter sempre o nosso território protegido para que o nosso povo tenha um futuro. Sejamos dignos com as pessoas que cuidamos como ele sempre foi, descanse em paz, homens com grandes histórias, não morrem nunca."
Nota dos Pesquisadores Associados ao Grupo de Pesquisa em Educação, Cultura e Diversidade UEMS-CNPq
Os (as) Pesquisadores(as) associados ao Grupo de Pesquisa em Educação, Cultura e Diversidade UEMS-CNPq, vinculado ao Curso de Pedagogia e ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Mestrado Profissional em Educação da Unidade Universitária de Campo Grande da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul/UEMS vem por meio desta nota se solidarizar com os sentimentos das(os) familiares e amigos(as) de Sr. Ambrósio da Silva pelo seu falecimento, ocorrido em decorrência das complicações da Covid-19 na manhã desta terça-feira, dia 04 de maio de 2021.
Sr. Ambrósio era filho do Cacique João Príncipe, expressiva liderança no período da ditadura que lutou muito, na década de 1980, pela reconquista e manutenção do território junto aos (as) guerreiros (as) Kadiwéu que vivem hoje na Terra Indígena Kadiwéu, conhecida como Campo dos Índios em Porto Murtinho, MS.
O Grupo é composto por estudiosos (as) da cultura e da saúde indígena e, também, por estudantes e profissionais da educação escolar indígena. Diante dessa convivência sentimos a dor do povo Kadiwéu nesse momento de despedida. Com esse sentimento de perda incalculável para os (as) entes queridos (as), apresentamos o nosso apoio e a nossa solidariedade.
Profa. Dra. Léia T Lacerda e Discente do Curso de Pedagogia Josemar Matechua Pires.