Solidão da mulher negra é confirmada quando “cintura” se vai com a juventude
Imaginário social racista impõe negras como “fogosas” e não "dignas" de serem levadas ao altar; um reflexo do período escravista
O "Coisa de Preto" desta semana traz mais um assunto ignorado, porém reflexo real do período colonial e escravista: a solidão da mulher negra. Hoje é o dia, que eu Danielle, jornalista negra, no auge dos meus 29 anos, verei uma enxurrada de comentários dizendo que é “mi, mi, mi” e que mulher branca também sofre solidão. Choices! Somos livres.
Tudo começa bem cedo, quando ainda na escola somos a única negra da roda ou a única amiga de outra negra. Nessa fase, não há nada de cunho sexual, mas somos sempre as garotas “engraçadas” para os meninos.
Enfim, as portas da adolescência se abrem e é neste momento o “vai ou racha”. Mas, adivinha? Você mais uma vez é a amiga que terá que virar “pombo correio” entre um boy e uma garota padrão, seja ela branca ou de pele mais clara que a sua.
Nessas duas fases citadas, resumimos situações ligadas às relações do cotidiano e nem entramos na questão da autoestima e nas horas no salão ou debaixo de uma chapinha alisando, forçadamente, os fios da cabeça, para se enquadrar no padrão de beleza imposto pela sociedade.
Anos se passam e você se vê na balada, belíssima, a própria Beyonce, maquiada com a linha Fenty Beauty by Rihanna e nada acontece. A não ser quando o rolê acaba e de repente se aproxima um inútil, bêbado querendo te beijar no fim da festa.
Nossa, mas não pode generalizar. É claro que não, há os espertinhos que querem se espolegar no começo da balada, mas tem que ser próximo ao banheiro, longe da pista, escondido!
De repente, a pegação avança. O cidadão aceita um namoro, mas diz não estar preparado para apresentá-la à família. O problema é que isso se estende por semanas, meses, anos e quando vê não dá mais. Eu te amo, mas não posso me casar agora.
Nossa, mas não pode generalizar. É claro, que não, há os que casam, fazem do relacionamento um circo, não colocam a esposa em primeiro lugar, as machucam de diversas formas e tipos de violência e, de repente, se vão deixando tudo para trás, inclusive os filhos.
É racismo estrutural ligado, especificamente, ao machismo. A junção das duas atitudes tem levado mulheres negras à exclusão afetiva há gerações.
Para Bartolina Ramalho Catanante, que é pós-doutora em Educação, atualmente, professora sênior da UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul) e presidente do Grupo TEZ (Trabalhos, Estudo Zumbi), o problema começa com a mistificação do corpo da mulher ou como se dizia durante a escravidão: a mulata exportação.
“Faz parte do imaginário social dos homens, a mulher negra fogosa, com um corpo cheio de curvas. E isso é mais evidente quando ela é jovem. Nem sempre a mulher negra é pedida em casamento na juventude, porque a ideia é de que ela pode ir para cama e não para o altar”, pontua.
Bartolina reitera que isso é uma característica do período da escravocrata, onde as mulheres negras eram estupradas, espancadas e submetidas a toda humilhação, porém, as esposas eram brancas e intocáveis.
“Quando nós vemos hoje mulheres negras de meia idade sozinhas, é porque, provavelmente, elas passaram a vida com filhos, mas chega um momento que os filhos também se vão e elas continuam sozinhas. A gente tem até nos grupos de estudos e pesquisas, muitos trabalhos discutindo essa questão de perspectiva da relação da mulher e sobre a possibilidade de a mulher negra ter outra visão sobre as relações. Há estudos que apontam até uma fuga às relações homoafetivas em decorrência da solidão. Tudo porque o homem não quer a mulher negra de meia idade”, pontua a pós-doutora.
Toda rosinha – Em 2018, durante a Copa da Rússia, um vídeo com dez homens, entre 30, 40 e 50 anos, e uma estrangeira viralizou. Com machismo, misoginia e assédio, eles gritavam: “Essa é bem rosinha” e depois “B..... rosa”, diversas vezes.
Esse episódio só confirma mais uma vez, o tipo do imaginário social dos homens e o reforço da ideia racista de que uma genitália cor-de-rosa é superior às demais causando um misto de consequências avassaladoras.
Esse tema, inclusive, é exposto em riqueza de detalhes no vídeo-documentário “Mulheres de Raça”, de 2017, que se propõe a discutir a solidão da mulher negra, a hipersexualização construída em torno de seu corpo e a discriminação decorrente dessas problemáticas, das jornalistas Stefanny da Silva Veiga e Vivian Campos de Oliveira.
Entre as personagens, muitas relatam o medo das relações sexuais com luzes acesas, principalmente, por causa da tonalidade de suas genitálias. Neste caso, Bartolina pontua: “Não é o que os homens dizem isso, mas é o que toda a sociedade diz”, frisa.
A autoestima se constitui ao longo da vida das pessoas e pode ser destruída da mesma forma. “Porque a beleza da mulher negra é vista enquanto ela tem todas as curvas. A partir dos 40 anos ela deixa de se enquadrar. Isso quando a mulher de 20 e 30 anos admite que tem beleza, porque as vezes, mesmo novas, essa autoestima já se foi”, frisa.
Outro ponto bastante discutido é fato de que relacionamentos entre mulheres brancas e homens negros são mais comuns. Há quem diga, que homens negros não olham para as mulheres negras, mas não há comprovação. No entanto, quando se entende que um companheiro negro ou vice-e-versa respaldará sua luta contra o racismo e demais problemas étnicos a busca é política.
“Hoje, eu Bartolina, politicamente, procuro um homem negro. Eu tenho um olhar político ao procurar parceiros por uma série de questões. Primeiro vem a questão da representatividade, e segundo, porque na hora de assuntos negros seu parceiro poderá respaldar seu discurso. Olha só a complexidade! Mas, não dá para generalizar, porque os relacionamentos surgem, o coração não escolhe. Em rodas de discussões, um militante negro chegou a levantar a questão de que homem negro que se relaciona com mulher branca não tem moral para discutir sobre a negritude, mas eu discordo. Várias de nossos parceiros militantes tem parceiros brancos”, garante Bartolina.
Acúmulo de opressão – E o sofrimento da mulher negra lésbica consegue ultrapassar o tormento da mulher cis. A servidora pública estadual e fundadora do Coletivo Povo de Axé Miriam Pereira ressalta que a negra lésbica tem sobre as costas o acúmulo de opressão.
“Primeiro vem o fato de ser negra, depois o machismo que nenhuma escapa, independentemente, de etnia ou orientação sexual. Ainda no machismo, vem a hipersexualização do corpo que também abrange a mulher negra lésbica e, claro, o fato de ser vista como incubadora, ou seja, todo mundo cobra filhos. Já me perguntaram quem irá me cuidar na velhice", frisa.
As preferências étnicas seguem em evidência dentro da comunidade LGBTQIAP+ (Lésbicas, Gays, Bi, Trans, Queer/Questionando, Intersexo, Assexuais/Arromânticas/Agênero, Pan/Poli, e mais). Há lésbicas brancas, que nunca, em toda a fase adulta se relacionaram com lésbicas negras. Há casos, em que lésbicas negras passam toda a vida sem firmar um relacionamento afetivo.
Além do racismo estrutural, há o racismo de cunho homofóbico, que invade a relação homoafetiva. Este é o caso de Miriam. “Minha esposa é loira e isso reflete dentro da nossa relação. Quem está de fora questiona: com tanto homem no mundo você vai ficar com uma mulher e, ainda por cima, negra? Outro exemplo clássico é quando a gente entra numa loja, seja ela de confecção ou de eletrodomésticos, sou eu quem vou pagar, mas os vendedores sempre se reportam a ela. Em viagem, não faltam piadinhas ou alguém com uma pergunta displicente. Em alguns casos, quando percebem o que falaram tentam se desculpar, mas aí já foi. Há festas que deixam de nos chamar, porque se ela for eu terei de ir, muitos convites não são estendidos a mim”, explica.
Ainda por cima é macumbeira? Entre tantos desafios a serem enfrentados no decorrer do dia, pelo fato de ser mulher, negra, lésbica, a única religião que de alguma forma “aceita” a diversidade são de matrizes africanas.
“Às vezes passa despercebido, mas a gente escuta que ainda por cima somos “macumbeiras”. As mais novas muitas vezes não aguentam essa pressão e se limitam à servidão e a sexualização para serem aceitas na sociedade e não ocupar o próprio espaço. Há também as lésbicas que se espelham em ativistas como nós, que já estamos na luta há muito tempo, e vem com a gente”, explica Miriam.
"Algumas de nós, todos os dias, estão de reinventando, porque do momento que você acorda até a hora que você vai dormir você vai enfrentar preconceito. Mas esse não é o meu caso, como negra e lésbica tenho um acúmulo de opressão e se a sociedade quiser me aceitar assim, tudo bem, mas se ela não quiser, ela vai ter que me engolir, porque não vou deixar de ser o que sou”, completa a servidora pública.
Miriam ressalta os dados de que mulheres pardas e negras são as mais estupradas e vítimas de violência em geral. “O homem em si, como um todo, não está preparado para ter na sociedade essa mulher independente, com voz ativa, que veio para estar ao lado e não abaixo e aí no atlas da violência você comprova quem são as maiores vítimas. Normalmente, essa mulher é quem sustenta a casa ou tem renda superior e ele não aceita, é o que chamamos de masculinidade tóxica”, pontua.
Mas a mulher negra por si só já é vista como a aquela mulher inabalável e que, basicamente, está condicionada ou a servidão ou a sexualidade.
“Aí você tem de acompanhar o raciocínio padrão de que o esteriótipo da mulher branca e magra é mais bonito que o nosso. Beleza! Se o dela é mais bonito que o nosso, por que a sexualizada somos nós? A maioria das negras lésbicas quando não está condicionada à sexualidade, está automaticamente ligada a servidão, velha ou nova. Porque o machismo é tão grande que o cara tem nojo da figura da mulher lésbica fora do padrão, mas ela serve para fazer sua comida", pontua.
Antes da entrevista encerrar, Miriam fez questão de retornar ao passado e ressaltar que a cultura patriarcal e conservadora do Brasil fez sua própria mãe de vítima.
"No Brasil, a mulher branca é a princesa criada para se casar, cuidar do marido e dos filhos, já a negra é criada para ser a “namoradinha escondida”, para limpar casa, lavar a louça, para falar mais baixo, para se colocar no lugar dela, mas não para ser levada ao altar ou apresentada à família. Isso, inclusive, aconteceu com meu pai e minha mãe. Meu pai português se casou com a minha mãe negra e da união vieram três filhos, os dois primeiros homens e quando eu nasci meu pai me entregou para um casal de tios, porque minha mãe não tinha condições “morais” de criar a filha mulher dele, mas era a mesma mulher com quem ele ia para casa todas as noites. E a história fica pior, o irmão dele era português casado com uma italiana. Eles tinham outros filhos, mas eu me tornei a empregada da casa e a única que apanhava de três a cinco vezes por dia. Essa pessoa que eu sou hoje, não é a pessoa que eu fui criada para ser. Eu me imponho, eu ocupo o meu lugar. Não me vejo condicionada de estar somente atrás de tanque, porque a mesma capacidade que outras mulheres e outros homens têm, eu também tenho”, finalizou.
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