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Comportamento

Um ano após um despejo desolador, Apyka'í resiste às margens da BR-463

Thailla Torres | 09/07/2017 07:20
Deixe viver é quase um pedido de socorro de quem vive às margens da rodovia. (Foto: Rafael Abreu)
Deixe viver é quase um pedido de socorro de quem vive às margens da rodovia. (Foto: Rafael Abreu)

Rafael Abreu, de 28 anos, não perde a esperança de ver um futuro digno para os índios de Mato Grosso do Sul. Desde 2011, como jornalista e antropólogo, ele acompanha a briga dessas comunidades com proprietários rurais e uma realidade devastadora para comunidades que vivem às margens da rodovia. Um ano após um despejo desumano, ele descreve no Voz da experiência, o martírio de quem há muito pede socorro.

Um dos cemitérios que os indígenas não tem acesso. (Foto: Rafael Abreu)
Um dos cemitérios que os indígenas não tem acesso. (Foto: Rafael Abreu)

"No dia 06 de julho de 2017 fez um ano que a Polícia Federal cumpriu o mandado de reintegração de posse expedido pelo juiz federal Fábio Kaiut Nunes, da 1ª Vara da Justiça Federal de Dourados contra Apyka'í. Ao amanhecer diversos policiais estavam na entrada da Fazenda Serrana, onde resiste o tekoha (lugar de onde se é), liderado pela Dona Damiana, uma das figuras mais interessantes em Mato Grosso do Sul.

A polícia chegou sem avisar a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e a comunidade, que foi pega de surpresa e teve que sair imediatamente de suas casas, enquanto seus pertences eram jogados às margens da rodovia. Em pouco tempo diversos apoiadores da luta indígena apareceram para prestar solidariedade e fiscalizar um das ações mais desumanas realizada pela justiça brasileira.

Em meio ao caos e a turbulência de ver seu tekoha ruir, Dona Damiana desesperada desabafou para o mundo ouvir: "Eu não vou aceitar viver na Jaguapiru ou na Bororo, aqui está meu cemitério. Eu vou ficar aqui. Nós também temos direitos para procurar, não é só branco que tem direito, índio Guarani Kaiowá também tem direito para procurar. Quantas pessoas que morreram por causa da São Fernando, da usina, de pistoleiro. Nove pessoas! Eu vou voltar de novo no meu tekoha", dizia Damiana enquanto a retroescavadeira destruía sua casa.

As reservas criadas pelo Estado brasileiro -  Jaguapiru e Bororo citada por Dona Damiana são duas áreas que juntas formam a Reserva Indígena de Dourados, criada em 1917, pelo Estado brasileiro para acomodar os indígenas, enquanto suas terras eram destinadas a colonização. Foram criadas oito reservas no início do século passado com o objetivo de retirar o indígenas de suas áreas e através das reservas, torná-los "civilizados" e integrados a economia nacional.

Muitos indígenas se negaram a viver nas reservas, quando levados compulsoriamente voltavam para suas áreas e como estratégia para viver no seu tekoha, acabavam trabalhando nas fazendas instaladas em seus territórios. A alta taxa demográfica da reserva e o processo de consolidação mais avançado de uma agricultura capitalista exportadora, tornou-se a vida na reserva inviável para muitos indígenas e a partir dos anos 80, intensificou-se o processo de recuperação de seus territórios.

Dona Damiana é vítima deste processo. Para não viver na reserva criada pelo estado, ela já trabalhou nas fazendas da região e ficou mais de 14 anos acampada em diversos pontos da rodovia esperando pela demarcação do tekoha Apyka'i.

Direito para quem? A Constituição Federal de 1988, apesar de ameaçada pelas manobras da bancada ruralista do Congresso Nacional, reconhece "a organização social, costumes, línguas, crenças, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam", Artigo231. Desde 1999 os indígenas estão revindicando perante o Estado brasileiro o tekoha Apyka'i, vivendo numa das mais graves situações de direitos humanos do mundo.

Desde este período a luta de Apyka'í gerou nove mortes em decorrência da luta pela terra, os corpos estão divididos em dois cemitérios, a maioria deles morreram atropelados. Os indígenas acusam a "pampinha" da Usina São Fernando de atropelar e matar propositalmente parte da comunidade. Nove mortes para uma comunidade que era de aproximadamente 20 pessoas é proporcionalmente uma ação genocida contra Apyka'i.

Uma das faixas como pedido de socorro. (Foto: Rafael Abreu)
Uma das faixas como pedido de socorro. (Foto: Rafael Abreu)

A fazenda Serrana que incide no tekoha de Damiana é de propriedade de Cássio Guilherme Bonilha Tecchio, foi arrendada durante um bom tempo para plantio de cana-de-açúcar para a Usina São Fernando, que este ano teve sua falência decretada pela justiça de Dourados, em decorrência de suas dívidas com os trabalhadores e empresas que passam de R$ 1,3 bilhão.

Esta usina foi financiada com dinheiro público, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e Banco do Brasil, 540 milhões de reais investidos num negócio privado, numa parceria entre José Carlos Bumlai, um forte pecuarista e a família Bertin (ex-donos de frigoríficos financiados pelo BNDES, que posteriormente foram comprados pelo concorrente JBS).

A Usina São Fernando é resultado de um delírio desenvolvimentista no setor energético operacionalizado pelo ex-presidente Lula, ex-senador Delcídio do Amaral e o pecuarista e mega empresário do setor de energia, José Carlos Bumlai, preso em uma das fases da operação Lava Jato.

Em 2007 os Estados Unidos estavam enfrentando uma forte alta nos preços da carne e do etanol, ambos feitos do milho, que com a forte demanda levou os presos a patamares altíssimos. Neste mesmo ano George Bush Filho, presidente do EUA, na época, fechou acordo com o Brasil para receber parte da produção de etanol. Esse acordo gerou um boom no setor e Mato Grosso do Sul começou a romper o binômio boi/soja e passou a ser um dos principais estados na produção de etano, com dezenas de usinas construídas.

Em 2013, o fogo da queima da cana-de-açucar que estava na área de Dona Damiana, chegou até a margem da rodovia, onde estava seu acampamento, que além de colocar a vida da comunidade em risco, destruiu todos os seus pertences. Cansados de esperar os indígenas entraram na área da Fazenda Serrano e ocuparam aproximadamente 3 hectares, sem prejuízos para a plantação da usina e nem para os 615 mil de hectares de cana-de-açucar plantado em Mato Grosso do Sul, segundo dados da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento).

Situação atual - Alguns dias antes do despejo, 29 de junho de 2016, a FUNAI publicou a Portaria nº 560 que criou um Grupo Técnico (GT) necessário para o procedimento de identificação e delimitação da Terra Indígena de Apyka'í. A justiça federal ignorou a portaria e aplicou o despejo da comunidade, colocando-os na margem da BR-463.

A versão preliminar do relatório de identificação era para ser entregue em maio de 2017, conforme documento assinado pelo ex-presidente da FUNAI, Antônio Costa no dia 23 de março deste ano, na sede do Ministério Público Federal (MPF) de Dourados. Desde a reintegração de posse a comunidade não consegue acessar os cemitérios de Apyka'í, que é tão importante para a sua religiosidade e cultura.

Na beira da rodovia, expostos a diversas situações de riscos, uma resposta do Estado brasileiro, que nos últimos anos pouco avançou na demarcação das terras indígenas, descumprindo a Constituição Federal e diversos acordos firmados com as lideranças indígenas. Deixem Apyka'í viver!"

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