Vestida pela quebrada, Alanys levou a periferia para formatura de Direito
Formatura contou com reconhecimento de Alanys pela sua comunidade, que fez de tudo para ela estar belíssima na colação de grau
A eliminação dos próprios direitos por parte da sociedade levou Alanys Matheusa ao Direito. Aos 22 anos, ela é primeira transexual negra a se tornar advogada no Mato Grosso do Sul. Além do título de “primeira”, a mulher forte da periferia acumula muito, muito amor pela sua comunidade, por isso, na semana passada, ela fez questão de levar toda a periferia para sua formatura de Direito na UCDB e se arrumou com tudo o que a quebrada oferece.
Dos pés a cabeça, cada detalhe foi significativo para Alanys, que não cansa de agradecer aos amigos e evidenciar a comunidade. Em razão disso, a conversa dela com o Lado B começou na varanda de casa e seguiu pelas ruas do bairro Guanandi, onde ela cresceu e mora até hoje.
Uma amiga da faculdade ofereceu à Alanys um salão de beleza “chique” para que ela pudesse se arrumar. Mas ela quis que a formatura fosse representada pelo trabalho de várias pessoas da periferia, “que todos os dias estão batalhando pela realização dos seus sonhos”, afirmou.
Vestido, cabelo, maquiagem, manicure e sapato, tudo foi garantido pela comunidade que assim como a família de Alanys vibrou com a sua conquista após 5 anos de estudos e dificuldades. “Quando eles souberam que eu ia me formar todo mundo fez questão de estar ao meu lado e isso foi muito gratificante”. Ela ainda faz questão de citar todos os nomes. “Fui maquiada pela Marcela Diniz, tive o cabelo feito pelo Marcelo Queiroz, estive com as unhas feitas pela Renata Ribeiro e me vesti com look do brechó Meio Fio, da Ângela Batista”.
Da vontade de ver Alanys formar surgiu um grupo no WhatsApp com mais de 50 pessoas. “Foi o jeitinho que a gente arranjou de se organizar e levar toda a quebrada para a colação de grau. Ter uma trans negra que valoriza a quebrada, que valoriza a questão de gênero e a questão racial é muito significativo. Nada melhor do que ocupar esses espaços. E eu sempre quero preservar a identidade do povo de onde eu venho”.
Alanys também atribui a sua conquista ao apoio e esforço da mãe, Ruth Maria, empregada doméstica que, segundo a filha, limpou muito chão para cuidar dela e das três irmãs. Na sala de casa, os recadinhos colados na parede, como “Não esquecer de estudar” provam que em meio as dificuldades, a educação é o que faz toda a diferença para a família. “Eu sou a primeira a conseguir um diploma e agora minha irmã também ingressou na universidade, aos 30 anos, isso é uma conquista que eu quero levar para toda minha família e a comunidade, especialmente às travestis e pretas”.
História de vida – Nascida em Campo Grande, desde criança Alanys sentia que era diferente. Experimentava escondida as roupas da mãe e dançava “É O Tchan” com as calcinhas da irmã. Ainda que a família não tivesse informações sobre transgêneros, ela sempre recebeu apoio dentro de casa.
Na adolescência, a expressão da feminilidade mudou, quando Alanys entrou para a igreja, lugar que segundo ela é o refúgio de muitos jovens da periferia. “A gente não tem para onde ir e nem condições de fazer algo fora da comunidade, então a igreja se torna também um ambiente de interação social e isso aconteceu comigo. Por isso, o processo de compreensão da minha identidade demorou um pouco”.
Única transexual/travesti negra da turma – É exatamente assim que Alanys se identifica e não teme quem acha errado. “Sou transexual e me reivindico como travesti porque elas são marginalizadas”, explica.
Foi no segundo ano de faculdade que Alanys passou a reivindicar a transexualidade. Convicta da própria identidade, ela fez questão de enviar a própria história ao grupo de WhatsApp da turma. “A partir daquele dia falei que me reivindicava como trans e travesti, e gostaria de ser chamada de Alanys”.
Houve resistência de alguns, mas por pouco tempo, lembra. “Logo em seguida todo mundo começou a me chamar de Alanys e meu nome foi parar na chamada. Isso me deixou muito feliz, embora a aceitação ainda seja difícil. Porque é fácil aceitar uma transexual ou travesti calada, mas ter uma trans preta que é combatível e que não aceita ficar quieta, é mais difícil”.
Alanys diz que escolheu Direito por acreditar que ele é instrumento de mudança social. “A minoria não faz as leis no Brasil, então, eu queria interpretá-las para poder defender os nossos direitos e conseguir mudar a realidade de pessoas que tiveram mesmas vivências que eu”.
Ela concluiu Direito graças a uma bolsa de 100% do Prouni e passou na prova da OAB antes de terminar a faculdade. Mas a força de vontade dela foi crucial para passar por cima de inúmeras dificuldades durante a graduação, como os desafios financeiros para adquirir cópias, livros, transporte e alimentação. “É tudo muito caro. Eu era uma das mais pobres da turma, filha de empregada doméstica, com uma realidade totalmente diferente da dos meus colegas. Amigas da turma me ajudaram nesse processo, a faculdade também disponibiliza bons livros na biblioteca e eu passava algum tempo na casa de amigas para poder estudar com calma”.
Ser a única transexual negra da turma e levantar pautas que discutem a realidade de minorias também foi um desafio. “A questão de gênero é mascaradamente aceita porque nessa década se fala muito sobre isso. Mas a questão racial é pouco discutida. Tem uma desigualdade de classe muito grande. Não é à toa que as minhas pautas raciais eram pouco aceitas. Falar sobre os direitos humanos dos bandidos não era algo aceito, porque o sistema carcerário é majoritariamente composto por negros e eles me diziam que isso era loucura, que isso era pauta de esquerda, que não existia racismo, por isso, incomodei bastante gente”.
Formada e à espera da entrega da carteirinha da OAB, Alanys se sente orgulhosa e esperançosa. Mas as duas conquistas, segundo ela, são apenas o começo de um sonho para quem chegar ao judiciário como juíza. “Penso também em atuar na Defensoria Pública, mas quero mesmo é ser juíza e vou batalhar para isso. A minha quebrada tem muito orgulho de mim e quero mostrar a elas que ser trans ou travesti, não significa que você só pode estar na esquina. Elas podem estar em outros setores da sociedade e fazerem a diferença”.
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