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Comportamento

Vida de casal cabe em sacolas e o que restou na rua é integridade

Juntos há mais de 20 anos, Rosângela e Otair têm três filhos e vontade de recomeçar a vida

Por Jéssica Fernandes | 03/10/2023 07:24
Rosângela e Otair improvisaram barraco na região da Via Park. (Foto: Henrique Kawaminami)
Rosângela e Otair improvisaram barraco na região da Via Park. (Foto: Henrique Kawaminami)

Em bairro "nobre" de Campo Grande, Otair Mendes da Silva, de 41 anos, e Rosângela Cunha da Silva, de 50 anos, têm a casa esparramada pelo chão. A vida do casal cabe em sacolas de plástico que compõem o cenário da moradia a céu aberto na Via Park. O que restou para eles é o orgulho de, independente da situação, viverem com honestidade.

A área verde, que fica ao lado esquerdo da Avenida Nelly Martins e próximo ao mercado Pão de Açúcar, é o endereço atual do casal que está há 23 anos junto e tem três filhos menores de idade. Os jovens estão morando com um parente, enquanto os pais sobrevivem de doação de alimentos, roupas e sapatos.

O que eles têm não é muito e está à vista na extensão dos galhos de árvore, onde estão pendurados coberta, lençol, garrafas de água e uma sacola com cartela de ovos e leite de caixinha. No chão estão mais sacolas, mas essas guardam peças de roupas e um par de tênis. Sem móveis, os dois têm um colchão e uma rede, que também está apoiada na árvore.

Penduradas em galhos, sacolas guardam pertencem pessoais do pintor. (Foto: Henrique Kawaminami)
Penduradas em galhos, sacolas guardam pertencem pessoais do pintor. (Foto: Henrique Kawaminami)
Otair junta latinhas em sacos de lixo para trocar por dinheiro. (Foto: Henrique Kawaminami)
Otair junta latinhas em sacos de lixo para trocar por dinheiro. (Foto: Henrique Kawaminami)

Os itens pessoais e materiais se misturam com papelões, lonas e sacos de lixo cheios de latinhas, que serão passadas adiante por alguns trocados. Por volta das 10h50, Rosângela estava fazendo o almoço quando a equipe de reportagem chegou.

Com uma cebola descascada em mãos, ela tinha três panelas que em minutos iriam para o fogo feito no chão. “Vou fazer um arroz e uma carninha”, diz. Rosângela é de Cuiabá (MT) e mora há 25 anos em Campo Grande, mas nem sempre nessas condições.

A história do casal e o motivo de estarem na rua é relatada a princípio por Otair. É ele quem fala sobre as dificuldades que enfrentam, que vão para além da falta de moradia, como também falta de emprego e auxílio. “Eu e minha esposa estamos há mais de 20 anos na lida e nos deparamos assim”, começa.

Antes de chegarem ao pedaço de terra na Via Park, eles já estavam vivendo na rua, mas em outra região. O momento em que deixaram de ter um teto não é mencionado, mas o pintor expõe que quer ter acesso ao que é um direito.

Pintor fala sobre os auxílios socilitados que não tiveram retorno. (Foto: Henrique Kawaminami)
Pintor fala sobre os auxílios socilitados que não tiveram retorno. (Foto: Henrique Kawaminami)

“A questão em si é que há três meses renovamos o auxílio e até agora nada. Eu tenho um ofício que o DPU enviou do auxílio aluguel e também nada. A aposentadoria dela, do LOAS, os papéis já encaminhamos. [...] Nós não queremos R$ 2, R$ 3, queremos o nosso direito”, afirma.

Sem Bolsa Família, auxílio aluguel e retorno sobre o LOAS (Benefício de Prestação Continuada da Lei Orgânica da Assistência Social), Otair e Rosângela vivem o imbróglio de encaminharem documentos que vão, mas não retornam com uma resposta que os possam tirar de onde estão. Outra das questões trazidas à tona pelo pintor é de uma casa que saiu no nome de Rosângela.

Há três anos, segundo Otair, a esposa foi contemplada com um imóvel. “Saiu uma casa no nome dela (Rosângela), mas minha mãe faleceu e eu estava em Alta Araguaia (MT). Procuraram o endereço, no caso, o contato da minha mãe e não encontraram ninguém. A casa voltou para o Estado”, explica.

Relatório médico de Rosângela emitido em setembro deste ano. (Foto: Henrique Kawaminami)
Relatório médico de Rosângela emitido em setembro deste ano. (Foto: Henrique Kawaminami)

Desde a pandemia, ele e Rosângela tentam reaver a casa, só que sem sucesso. “É sempre volta daqui tantos meses, a primeira gestão a mesma coisa, a segunda a mesma coisa. É sempre o assessor não tá, ficamos esperando duas, três horas”, declara. Com o passar do tempo, a vida foi afunilando, virando a ‘bola de neve’ que o pintor resume em poucos minutos de conversa.

Ambos estão desempregados, mas ela não pode trabalhar devido ao diagnóstico de esquizofrenia e bipolaridade. Para completar, ela reclama de dores nas varizes e nos pés provocadas por verrugas plantar. “Isso dói, ando até assim, mas tô aqui graças a Deus”, diz ela.

Rosângela é uma mulher magrinha com menos de 1,65 m de altura. Ela gosta de conversar, faz algumas queixas sobre dores, falta de respostas do auxílio, porém sem perder a firmeza que carrega no olhar. “Só Deus mesmo, mas sempre com dignidade, cara limpa e trabalhando”, comenta.

Apaixonada por plantas, Rosângela segura alguns dos cactos que tem. (Foto: Henrique Kawaminami)
Apaixonada por plantas, Rosângela segura alguns dos cactos que tem. (Foto: Henrique Kawaminami)
Fogão improvisado no chão e panelas são usadas para prepato de comida. (Foto: Henrique Kawaminami)
Fogão improvisado no chão e panelas são usadas para prepato de comida. (Foto: Henrique Kawaminami)

O trabalho dela são os cactos e os arranjos de plantas que fazem parte da decoração do ambiente. Ao falar sobre as mudas e as plantas, a mulher sorri e revela um desejo. “Sempre gostei, meu sonho é ter uma floricultura, eu amo plantas. Sempre fui vendedorinha assim”, afirma.

Em outro ponto da conversa, Otair chora por causa da condição dele e da esposa. As lágrimas passam, mas a indignação pela falta de respostas sobre a casa e o auxílio permanece.

Devido à falta de energia elétrica, o pintor no momento junta pilhas com a esperança de conseguir colocar luz à noite. Já a água que bebem e usam para cozinhar vem através de doação do mercado, que é o lugar onde fazem a higiene pessoal.

Durante entrevista, Otair fica emocionado e chora. (Foto: Henrique Kawaminami)
Durante entrevista, Otair fica emocionado e chora. (Foto: Henrique Kawaminami)

A ajuda e as doações recebidas até agora são motivo de agradecimento de Odair às pessoas que chama de ‘anjos’ encontradas nessa trajetória. No fim, o casal segue persistindo, a maneira que podem, com sonhos e sem abrir mão do que acreditam. “O que persiste é a integridade, o direito de ir e vir. Não pode perder a essência”, destaca Otair.

Os dois não têm telefone para contato e pedem que àqueles que quiserem ajudar os encontrem. Otair e Rosângela estão na área verde esquerda da Avenida Nelly Martins próximo ao mercado Pão de Açúcar.

Juntos há mais de 20 anos, casal tem sobrevivido com integridade. (Foto: Henrique Kawaminami)
Juntos há mais de 20 anos, casal tem sobrevivido com integridade. (Foto: Henrique Kawaminami)

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