De MS à Cordilheira: uma aventura de 4x4 para cruzar a Rota Bioceânica
Grupo composto por quatro mulheres viajou para validar o 1º roteiro integrado de turismo de observação de aves
Simone e Gabriela Mamede, Maristela Benites e Marinês Durantes foram as primeiras mulheres a percorrer a Rota Bioceânica (Brasil, Paraguai, Argentina e Chile) de forma independente. Em uma aventura de 4x4 durante 16 dias, o grupo enfrentou o frio de -9ºC, atravessou o deserto do Atacama e registraram mais de 200 espécies de aves. Com tanto o contar, hoje as quatro mulheres se dividem para narrar um pouco da aventura no Voz da Experiência.
RESUMO
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Um grupo de quatro mulheres, composto por Simone, Maristela, Gabriela e Marinês, realizou uma expedição de 16 dias pela Rota Bioceânica, que abrange Brasil, Paraguai, Argentina e Chile. O objetivo principal da viagem foi validar um roteiro de turismo de observação de aves, onde registraram mais de 200 espécies, incluindo aves endêmicas e ameaçadas. Durante a jornada, enfrentaram desafios como condições climáticas adversas e longas horas de viagem, mas também vivenciaram a rica diversidade cultural e natural da América do Sul. A experiência proporcionou um aprendizado significativo sobre a importância da conservação da biodiversidade e a integração cultural entre os povos latino-americanos, destacando a beleza e as dificuldades enfrentadas ao longo do caminho.
Mas, antes do relato sobre toda a história, vamos às apresentações de cada uma e uma contextualização geral sobre a expedição. Simone é bióloga e turismóloga, doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento Regional, além de professora universitária; Maristela também é bióloga, além de ornitóloga, doutora em Ensino de Ciências e diretora do Instituto Mamede de Pesquisa Ambiental e Ecoturismo.
Gabriela é bacharel em Direito e especialista em Estratégia para a Conservação da Natureza; e, fechando o grupo, Marinês é turismóloga.
Como foco principal, a expedição teve o objetivo de cruzar a Rota Bioceânica para validar e formatar o primeiro roteiro integrado de turismo de observação de aves. Segundo Maristela, esse trajeto já havia sido escrito com pesquisadores e companheiros paraguaios e argentinos. Inclusive, foi publicado na Revista Brasileira de Ecoturismo (clique aqui).
No caminho, o grupo garantiu o registro de espécies endêmicas (nativas, restritas àquele local), raras e também ameaçadas.
Além das quatro (que realizaram o percurso todo), o trajeto no Brasil também foi acompanhado pela equipe da Icterus Ecoturismo, com Gabriel Oliveira e Rafael Souza, além de Nancy Proença, do Coletivo de Mulheres Observadoras de Aves do MS Cunhataí Guyra (Suzana Arakaki e Regina Salazar), e das turismólogas da secretaria de turismo de Porto Murtinho
E, agora, a palavra segue para Simone, Gabriela, Maristela e Marinês.
Preparo e encanto com a diversidade brasileira
Simone Mamede: O planejamento (preparo) foi de muito diálogo, análise de mapas e também do roteiro já criado por nós e publicado na Revista Brasileira de Ecoturismo. Durante o planejamento contamos com apoio dos companheiros do Paraguai e da Argentina.
Então, antes de destacar o que há para além das fronteiras, é importante falar de Brasil: Campo Grande é reconhecida como a Capital do Turismo de Observação de Aves, a cidade abriga mais de 400 espécies de aves na área urbana e periurbana e com aproximadamente 30 pontos importantes para observação de aves na área urbana. A praça de Nioaque é parada obrigatória, local que é possível observar as três araras: arara-canindé, arara-vermelha e arara-azul em plena praça da cidade.
Na cidade de Jardim também há parada obrigatória para ver as inúmeras Araras-vermelhas e outras aves cuidadosamente protegidas na RPPN (Reserva Particular do Patrimônio Natural) Buraco das Araras. Em Porto Murtinho somos maravilhados com as aves do Chaco em território brasileiro. Porto Murtinho é um dos únicos lugares no Brasil que é possível observar aves chaquenhas.Por morarmos no Brasil, o trecho brasileiro é o local que realizamos pesquisas em ornitologia desde 2002.
Entre dificuldades e boas surpresas permeando fronteiras
Maristela Benites: O que mais me impressionou na viagem foi a riqueza natural e cultural da América do Sul que, sem dúvidas, foi de tirar o fôlego. Estar diante da Cordilheira dos Andes, em sua vastidão e grandiosidade, ao mesmo tempo em contato com o Chaco, que, apesar da grandeza territorial, encontra-se em processo avançado de destruição, aflorou em mim o sentimento de verdadeiro assombro entre o maravilhamento e a desesperança.
Tanto os cardones, cactos gigantes do deserto, quanto a palmeira Carandilla no Chaco seco detiveram meu olhar em vários momentos, não somente por sua beleza, mas também pela forma como os territórios de que são parte são vividos por seus habitantes. Ao longo da viagem é possível sentir um misto de pertencimento e de irmandade com os povos latino-americanos.
Nós do Mato Grosso do Sul, especialmente da fronteira, nos identificamos com a chipa, a sopa paraguaia, o coquito, o mate e a tortilha. E ao longo desse percurso até o Chile fomos degustando desses mesmos produtos culinários, e suas variações, derivados da mandioca, do milho, do trigo, do leite e da erva-mate sujeitados aos saberes e fazeres das gentes com sua realidade. Ou seja, desenvolvemos práticas culturais semelhantes e mesmo as diferenças mostram que estamos unidos social e geograficamente.
Maristela Benites: As dificuldades principais foram vencer o terreno altamente arenoso do Chaco seco por 200 km e depois ficarmos paradas na imigração chilena, por horas a fio – cerca de 20 horas, e sob baixas temperaturas no deserto do Atacama até sermos liberadas pós-teste covid. Os agentes não tinham autorização para liberar os turistas sem um teste das últimas 24h para detecção do vírus da covid-19.
Chegamos a somar 200 pessoas à espera de teste que deveria ser realizado por agente de saúde local que no dia estava ausente. Como não havia oferta de hospedagem para tanta gente, por se tratar de pequeno vilarejo onde se localiza o Paso de Jama, dormimos no carro sob temperatura de -9ºC na madrugada.
Para quem vive no Mato Grosso do Sul com temperatura próxima dos 40ºC, é de se imaginar que não fora nada fácil suportar tamanha prova. A pandemia representou desafio a mais na viagem, mesmo sendo em 2022 quando o período crítico já havia sido superado e todas nós contássemos com três doses de vacina, conforme cartão de vacinação em mãos.
Os postos de imigração não funcionarem por 24 horas também nos desafiaram bastante. Mas todos os obstáculos foram superados com espírito de equipe, descontração e muita determinação em concluir satisfatoriamente o percurso.
Confira a galeria de imagens:
Simone Mamede: Como diria Manoel de Barros, essa viagem me salvou à pássaros. Ela me fez sentir muito mais latino-americana, mais hermana e mais humana. Enquanto profissional, ela nos mostrou que estamos no caminho certo realizando a integração dos povos latino-americanos em ações integradoras que proporcionam o encantamento, a observação, a percepção, a conservação e valorização da biodiversidade, da cultura da observação da vida silvestre, assim como a valorização das diversas culturas.
No caminho, entre os melhores pontos, esteve o encontro com inúmeras espécies de aves endêmicas do Chaco Paraguaio e Argentino como o batuqueiro-chaqueno e o crestudo, o encontro com espécies incríveis na pré-cordilheira (rei-do-bosque) e na cordilheira, como os matamicos-andino e chanchito na Puna Andina, a travessia do deserto do Atacama e chegar no Oceano Pacífico e observar os Pelicanos no Chile. Além disso, o encontro com os amigos argentinos como Giselle Magini e companheiros da ONG Seamos Bosques em San Miguel de Tucuman para observação de aves e confraternização com empanadas.
Já pensando nas maiores dificuldades, passar as madrugadas do frio extremo no aguardo da abertura da fronteira em Paso de Jama (Argentina/Chile/Argentina), tanto na ida quanto na volta, foi o mais complicado.
Gabriela Mamede Damin: Durante o percurso, tivemos a chance de observar não apenas a biodiversidade dos locais visitados, mas também de conhecer a cultura, os costumes e as histórias das comunidades ao longo do caminho. Estávamos em um grupo diverso, composto por Simone Mamede, Maristela Benites, Gabriela Mamede Damin e Marines Duranes. Essa diversidade de perfis e conhecimentos foi uma riqueza adicional, pois cada um trouxe uma perspectiva única para a expedição.
O roteiro foi planejado para incluir paradas estratégicas para observação de aves e de paisagens. Pude vivenciar momentos memoráveis, como o primeiro contato com espécies que nunca havia registrado antes, além de testemunhar o espetáculo da natureza em locais pouco explorados.
Foi impressionante perceber a riqueza da avifauna em cada região, com registros que variaram entre espécies endêmicas e migratórias. Um dos momentos mais marcantes foi avistar flamingos nas salinas chilenas — uma cena que, para mim, simbolizou a conexão entre o esforço humano e a preservação da biodiversidade. Cada parada revelou a beleza única de cada ambiente, reafirmando o potencial de ecoturismo dessa rota.
Embora tenhamos enfrentado desafios, como condições climáticas adversas, longas horas de viagem e a necessidade de adaptar o planejamento em alguns momentos, esses obstáculos foram superados pela força do grupo e pelo propósito maior da expedição.
O aprendizado e a troca de experiências ao longo da jornada foram, sem dúvida, os pontos altos. Foi emocionante perceber que, mesmo com as dificuldades, conseguimos construir um roteiro que hoje pode ser uma referência para outros grupos interessados em explorar a Rota Bioceânica de forma sustentável.
Marinês Duranes: Eu tive dificuldade com a altitude, temperatura e também com a água. Mas, entre os melhores pontos, em cada parada era um cenário maravilhoso. O que vai ficar guardado na minha mente será as Cordilheiras dos Andes, foi incrível dirigir naquele cenário e, também, um aprendizado constante.
A viagem aumentou meus conhecimentos culturais, a troca de experiências e mudou meu olhar para alguns roteiros turísticos. Me permitiu conhecer novas culturas, pessoas e lugares que jamais sonhei conhecer.
Permeando por belezas e cenários dolorosos
Passar tantos dias em uma viagem de observação e recheada de sensações garantiu que as participantes sentissem um pouco da atmosfera integrada da Rota. E, somado a isso, mostrou a importância dos acordos diplomáticos entre os países, como faz Maristela faz questão de pontuar.
Maristela Benites: A América do Sul é linda, somos um povo também muito lindo e rico em múltiplos aspectos. No entanto, toda essa beleza é pressionada pelo capitalismo e pela sociedade do consumo. Além da destruição de hábitats de tantas espécies, o excesso de resíduos sólidos impactam o olhar e nos fazem questionar sobre nosso modelo de sociedade.
O desprendimento, a disposição para o novo, para a aventura, o planejamento antecipado junto às decisões rápidas, às vezes sensatas ou mais arriscadas diante de imprevistos, o companheirismo, a afetuosidade, a sensibilidade perceptiva da sociobiodiversidade e o espírito de equipe foram lições marcantes a se efetivarem como aprendizado duradouro para a vida inteira.
Passarinhar com amigos que fizemos no Chaco e na pré-cordilheira andina Argentina foi satisfação inenarrável, assim como saborear as tortilhas recheadas de queijo e tomate em pleno deserto de sal, cuja paisagem deslumbrante aos visitantes constituem desafios a serem cotidianamente superados pelos povos andinos com trabalho duro para produção de existência.
A diferença e similaridade na fauna e flora, desde o condor andino que não temos no Brasil até o carcará espécie comum e compartilhada com esses países tornaram simplesmente sensacionais cada encontro e registro.
Algumas aves que são migratórias e chegam ao Mato Grosso do Sul vindas do oeste continental, isto é, do Chaco e pré-cordilheira, foram encontradas com muita facilidade e em número maior de indivíduos, como a maria-preta-acinzentada, o rei-do-bosque e o raro (para nós, é claro) batuqueiro-chaquenho. Claro que muitas outras foram lifers, ou seja, representaram o primeiro encontro com elas.
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