Nem tempestade de raios e vento forte desanimam trilha em morro de 400 metros
Tudo o que a teoria falou, a prática ensinou. Neste sábado e domingo, o Lado B embarcou no que pode parecer, de longe, furada. A previsão do tempo já tinha alertado que o final de semana chegaria com chuva forte, vento e queda na temperatura. E ainda assim, a gente preparou uma mochila para o curso de trekking na Serra de Maracaju. Caminhada longa que incluía um pernoite no alto do morro. Em resumo, seis quilômetros de ida e mais seis de volta, numa altitude de 400m.
Quem ministrou o curso e depois orientou na hora do medo foi a montanhista Laila Blanch, do Mantra Adventure, a convite da agência de Ecoturismo, Sopa de Pedra. Laila é nascida e mora em São Paulo. Odeia São Paulo e depois de uma viagem de autodescoberta, pelo Caminho de Santiago, em 2009, confirmou a máxima de que felicidade cabe sim dentro de uma mochila. Desde então, seu escritório funciona ao ar livre, onde o expediente é cumprido debaixo de sol, chuva ou vento forte.
O curso começa com a parte teórica, que explica desde a origem da palavra "trekking", derivado do africanês, para denominar um povo que andava com tudo o que tinha nas costas. A medida em que as colônias foram se formando, o termo ganhou outro sentido, como descoberta até chegar ao que é hoje: atividade de lazer, de caminhada longa em meio à natureza com pernoite e um objetivo, onde tudo o que você precisa, está nas suas costas.
A primeira parte acontece no ponto de apoio, na Chácara dos Mirantes, do simpático Jamil e da sua esposa, Lúcia. Na teoria, Laila explica para mim e outros 10 participantes, tópicos de boa conduta para com o meio ambiente. O primeiro deles resume tudo: planejar. Saber para onde está indo, quanto tempo vai ficar e deixar alguém avisado, sempre. Depois vem segurança, o uso correto de equipamentos, o respeito para com o local e as pessoas que encontrar pelo caminho.
Mas a parte mais importante mesmo e que fomos aprender na prática (entende-se na marra), foi como montar uma mochila. Além de ficar mais organizada, a arrumação certa faz uma grande diferença no peso.
O essencial é, sem ser reticente, saber para onde se está indo e qual a temperatura que se espera lá em cima. Uma roupa extra completa - de meia até blusa - sempre deve ser levada. Mesmo que a chuva não lhe faça companhia, a que você usou durante o dia todo ficará úmida com o suor e consequentemente, na hora de dormir, vai esfriar o corpo.
Na mochila,o isolante térmico deve ser a primeira coisa a ser colocada ao redor dela, como quem está "moldando" a mochila. E depois, o saco de dormir, que deve ser espremido ao máximo. Para então as roupas. A lógica é deixar o que for usar durante o trajeto, acessível. Mochila pronta. Água calculada para consumo, escovação de dentes e também cozinha, é hora de por o pé na estrada.
De longe, já tinha visto onde ficaríamos acampados. No alto do morro. Do chão, não tinha noção de como chegaríamos lá. Eram 400 metros de altura, com uma mochila de uns 10 quilos nas costas. As horas na natureza passam num compasso diferente. A última vez que vi o relógio, os ponteiros marcavam antes das 3h da tarde e estavávamos nos preparativos finais. Quando a caminhada começou, entendi que a mochila não fica apoiada nos ombros e sim nos quadris. Devidamente amarrada, segui o caminho da trilha, tentando não pensar no tempo e nem na distância.
A trilha segue com os guias se dividindo entre o grupo. Claro que sempre fico por último, ao lado da guia do Sopa de Pedra, Elijane Coelho. O cansaço chega cedo às pernas curtas e que não são acostumadas a tamanho exercício. O trecho passa por travessia de água, entre pedras até chegar ao desafio maior: uma trilha fechada onde a subida é tão íngreme que o fôlego vai embora só de olhar.
Com o sol se pondo mais cedo, o pedido era para apressar o passo, isso porque a subida vinha junto com o mau tempo. A chuva estava para chegar, o céu se escureceu. A mochila pesou não só para mim. Para quase todo mundo. Assim que o grupo todo chegou num ponto alto, a chuva não perdoou. E veio aos poucos, dando tempo para a gente tirar a capa para si e para a mochila. A orientação de Laila foi para que descessemos, porque o ponto alto era cercado de árvores e os raios podiam muito bem cair por ali.
Foi o momento em que descer o que antes foi a subida mais difícil, era necessário. E foi a prática do que na brincadeira, todos já tinham ouvido. Que para ser trekking é preciso ser um bom contador de histórias e ter memória ruim. E não é que naqueles minutos debaixo de chuva, vendo o céu sendo tomado pelo cinza, se descobrem as histórias de cada um? Tem até a bióloga que já passou três meses na Malásia caçando sapos (que será assunto de uma próxima matéria).
Quando a chuva para, os raios também, se espera marcar cinco minutos sem a presença do clarão no céu para sentir que o tempo se estabilizou mesmo. Mochila nas costas e em breve, lanterna nas mãos. Os dias que antecederam ao curso estavam lindos, de sol e de lua digna de fotos durante à noite. Mas justamente no acampamento, não tinha nenhuma estrela sequer para iluminar o céu. O jeito foi seguir em fila indiana e observar, através da luz da lanterna, onde certinho pisava o trekker da frente.
A chegada no acampamento foi às escuras e debaixo de chuva. Depois de montadas as barracas, a garoa deu um tempo o suficiente para que o jantar fosse feito e quem levou aperitivos como queijos e vinhos, tirasse das mochilas. Montar barraca não é fácil, exige experiência que só vem quando o vento mostra que a sua não ficou bem montada. O vento forte da madrugada chegou a derrubar e quebrar algumas. Mas de pronto, todos foram relocados em barracas de amigos. O que uma trilha dessa faz é criar laços, além de viciar, claro.
Quando o sol nasceu, o vento voltou sem pressa e medo de fazer estrago. Não fazia frio. A velocidade do alto era de cortar a pele, mas abrir a porta da barraca e dar de cara com a paisagem, compensava tudo. Acho que ali está o motivo do "esquecimento". Fica para trás o caminho penoso, quando a chegada compensa.
E é no dia seguinte, que se percebe que o curso ensinou, no nível "hard", como é um trekking. Se desse tudo certo, ninguém teria aprendido o quão importante é um isolante térmico e uma muda de roupa seca.
Corredora há 3 anos, a funcionária pública Adriana Vaz, veio de Dourados para o curso. O objetivo era aprender a interagir mais e melhor com a natureza. A dificuldade foi o tempo. Chuva e frio lhe trouxeram o medo de ficar doente antes de uma competição importante.
"Muitas vezes a gente ouve: 'nossa fulano estava lá e aconteceu uma tempestade. Deus me livre, não quero nem pensar, que absurdo'. Mas não, é uma experiência muito bacana, você consegue passar por isso tranquilamente e não é tão difícil quanto parece. Acho que a sensação de estar próxima da natureza e de Deus é o mais legal", frisa.
É difícil não me inserir no texto, ainda mais quando viajei com a ideia de conhecer e viver como Paulinha e passar para o papel como jornalista. Um professor universitário, Anderson Benites, tinha de início a missão de apenas me dar carona. Mas se tornou um anjo da guarda no caminhar. Eu não tinha nada de acampamento em casa, a não ser uma lanterna comprada para a última trilha junto do Sopa. Amigos me "vestiram" para caminhar e colegas de trekking me ensinaram a não desistir.
"Quando se faz trilha, ajudar uma pessoa é normal. Ainda mais quando se vê que ela não tem muita prática", brinca Anderson, de 39 anos. Há 12 meses que as trilhas viraram rotina nos finais de semana dele, a ponto da tempestade do meio do caminho nem assustar tanto. "O que fiquei mais tenso foi ver, enquanto estava subindo, que outra tempestade vinha e que se ela chegasse antes da gente montar as barracas... Ferrou". "Mas o mais incrível é que depois que você passa por essa situação tensa, tem a sensação de autossuficiência e segurança", resume. A tempestade que ele enxergou vindo, não nos alcançou. Sorte.
Na manhã seguinte, quando a descida era o trajeto. O casal Igraine e Ediney já riam da situação. A ideia do curso foi dele, que ela embarcou e depois se arrependeu. "Ele que é bom de dar entrevista, ele estava achando um máximo a chuva, enquanto eu chorava", brincou a estudante Igraine Helena Osório, de 23 anos.
A ideia de Edinei era que o curso deveria ensinar tudo, até mesmo debaixo de chuva, para que ele aprendesse a lidar numa situação difícil mesmo. "Imagina se a gente tivesse aqui sem os guias? Aí sim seria uma catástrofe", justifica Ediney Soares Machado, de 23 anos.
O casal ficou conhecido por todos, porque a barraca deles quebrou e foi para o chão, literalmente. Igraine não levou uma muda de roupa a mais e ficou molhada. Pela chuva e também pelas lágrimas. "Na hora da tempestado, a posição que a gente colocou a barraca ventava demais, ela deitava e a qualidade não era boa. Ela quebrou e desmontou inteirinha na gente", descreve. Os organizadores do curso agiram mais do que depressa. Cada um foi para uma barraca amiga.
Brincadeiras à parte, Igraine já cogitava, na manhã seguinte, repetir a dose. "Meu problema era que a expectativa foi outra, eu já tinha acampado uma vez, mas tudo na santa paz, quando eu vi a barraca em cima da gente, aí que pensei: 'onde foi que eu me enfiei?' Mas trabalhar o emocional é fundamental, eu não trabalhei, só chorei. Mas o melhor foi acordar de manhã com o céu azul e essa paisagem, compensou", se diz convencida.
Nos momentos em que o medo tomou conta, é que ela sentiu que um esporte assim, pode fazer um bem inimiginável. "Você não foca em outra coisa a não ser sobreviver. Você pensa que quer estar num lugar seco e vive um passo depois do outro. Então o foco passa a ser viver o momento e isso é extremamente terapêutico. Eu sofri, reclamei, mas valeu a pena", afirma.
Na descida, o sol fez companhia todo trecho. E a paisagem se tornou ainda mais bela. O cerrado predominante na área contrastava com o céu azul que só Mato Grosso do Sul tem. A conversa era outra, bem mais animada. Mas a dificuldade também. Se subir é difícil, descer pode ser mais ainda. Isso porque os pés precisam estar firmes e as mãos com o bastão fincado. Escorregar pode virar boliche e derrubar o da frente. Por sorte, preparo e segurança de quem passou por trechos piores, ninguém caiu feio. Nem eu.
O encerramento do curso veio como um alento. O certificado era a premiação. "Subir não é fácil, mas a vista lá em cima vai valer a pena. Isso vale para trekking, para relacionamentos, para a vida. O trekking vai nos monstrando coisas. A vista vale a pena, mas o que nos ensina é a caminhada", resumiu a mestre do curso, Laila Blanch. Sem a mochila nas costas, a sensação que se tem é de que falta alguma coisa. Talvez uma próxima meta. Quem sabe mais de seis quilômetros, morros mais altos e mais para aprender.