Uso sustentável da água na agricultura é caminho para driblar a crise hídrica
A falta de água é uma questão muito preocupante hoje no Brasil. Sob o pensamento de muitos especialistas, caso providências não sejam tomadas, esta riqueza natural pode estar com seus dias contados. É importante pensar que por trás de muitos questionamentos existe todo um processo na gestão dos recursos hídricos e que nesse contexto a agricultura, por representar mais de 70% do consumo da água demandada pela atividade humana, precisa ser analisada, tanto em seus problemas atuais, quanto em suas potencialidades alternativas.
“Há muito tempo se imaginava chegar a um ponto crítico na crise hídrica, e agora isso está acontecendo de forma dolorosa e radical. Não é um caso eventual de falta de chuva, mas algo que são consequências de ações. No caso específico da agricultura, é uma das vertentes mais importantes para analisarmos nesse momento crítico”, comenta o engenheiro agrônomo Tércio Jacques Fehlauer, doutor em Desenvolvimento Rural pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e pesquisador da Agraer (Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural).
Tércio afirma que o mundo exige uma produção agrícola compatível à demanda crescente de alimentos, mas não concorda que o único modo de produção existente seja o modelo atual baseado na monocultura extensiva e criação de animais, com grande implicação na demanda e conservação da água no ambiente. "Há todo um sistema econômico e alimentar corporativo que gera uma dependência deste modelo de desenvolvimento, dificultando o avanço de alternativas mais adequadas, sobretudo baseado na diversificação das espécies vegetais e proteção de solo e água. Diante deste quadro, em especial com relação à crise da água, nota-se uma grande irresponsabilidade em meio à gravidade da situção", completa.
Já segundo a engenheira civil Synara Olendzki Broch, doutora em Desenvolvimento Sustentável pela UnB (Universidade de Brasília) e coordenadora do curso de especialização da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) em Educação Ambiental e Espaço Educadores Sustentáveis, a agricultura mesmo quando focada nas melhores técnicas para uso e manejo do solo, possui um cuidado ambiental pouco promovido por conta da escassez de instrumentos que motivem as pessoas a cuidar de suas terras de forma sustentável capaz de produzir água para todos. “O agricultor deveria ser pago por manter sua terra ambientalmente equilibrada e mantendo o ciclo hidrológico em funcionamento, porque ele está garantindo água não só para ele”, sustenta.
A engenheira ressalta que na prática, o que existe é desgovernança. “O assunto da recessão da água está em alta devido aos acontecimentos de esgotamento em São Paulo e por isso todos estão alarmados. Isso não é novo. Investir nesse processo de uso sustentável significa calcular o que vai se ganhar e perder, porém isto ainda não é uma prática comum. Na região Nordeste onde o clima é semiárido existe um avanço nessas questões”.
“A água não acaba, não vai sumir do planeta. O ciclo hidrológico faz com que a gente tenha a possibilidade de renovação, por isso é que há como planejar e gerenciar para o uso sustentável. O que acaba é a possibilidade do uso quantitativo ou não podermos utilizar devido à má qualidade, portanto a possibilidade de uso se esgota”, argumenta a professora.
Apesar de o maior percentual da água mundial ser destinado à agricultura não significa necessariamente que o setor seja o único vilão da falta de água atualmente. A escassez se deve a um conjunto de fatores somado a várias situações, conforme explica Synara.
Bacias salvadoras! - Quando se fala em escassez de água, é preciso que as pessoas entendam que a bacia hidrográfica é a unidade territorial de gestão dos recursos hídricos, e exige planejamento integrado para a aplicação dos planos de gerenciamento. “Não existe projeto de drenagem que funcione nem mesmo com a melhor engenharia do mundo se tiver lixo entupindo o bueiro. É impossível drenagem perfeita se a gente não tiver aplicações de planos diretores dos municípios referentes ao uso e ocupação do solo que permitam tempo para a água ser impermeabilizada para não encher o curso em prazo recorde resultando em enchente e também algumas técnicas da engenharia de captação da água para ela não escoar tão rápido e causar os alagamentos”, diz Synara.
“O que está ausente do pensamento coletivo muitas vezes é ter uma visão integrada da bacia hidrográfica, analisando o percurso, intensidade e finalidade da trajetória da água”, observa a engenheira ambiental Adriana Galbiati, mestre em Tecnologias Ambientais pela UFMS. Ela relata que na agricultura é retirada a cobertura do solo para ser substituída por plantações, processo que estimula a degradação do solo. Quando chove, sem barreiras naturais, a água escorre com velocidade levando impurezas para os rios, provocando voçorocas e o assoreamento. Dessa forma a água passa rapidamente pelo solo sem a possibilidade de infiltrar tornando-o mais árido.
A engenheira agrônoma Larissa Fernanda Rosa de Almeida, doutoranda em Saneamento Ambiental e Recursos Hídricos pela UFMS, concorda que a agricultura demanda grande quantidade de água. Ela aponta que o setor de irrigação é um importante usuário e por isso destaca a necessidade de buscar caminhos que permitam o desenvolvimento dessa atividade com o máximo de eficiência. É importante o planejamento e acompanhamento profissional para que a irrigação gere aumento na produtividade das culturas através da escolha e manejo adequado do sistema, evitando a aplicação deficiente ou excessiva de água.
É preciso pensar no caminho que a irrigação tem que tomar pela ótica da gestão de recursos hídricos, com a adoção de métodos que desperdicem menos e considerem os múltiplos usos da água, como informa Larissa. Ela argumenta que parte da água utilizada na agricultura retorna à atmosfera por meio da evaporação nas camadas superficiais do solo e da transpiração das plantas, processo conhecido como evapotranspiração. É essencial, porém, que a escolha do sistema de irrigação seja baseada no uso sustentável dos recursos hídricos, mesmo que o investimento inicial do irrigante seja maior, pois assim ele estará protegendo e garantindo o seu principal insumo: a água.
A região Centro-Oeste, na opinião de Synara, é uma fronteira agrícola por conta de seus recursos naturais. Neste cenário ainda há poucos estudos voltados à irrigação em Mato Grosso do Sul e por isso o Estado deve se preparar para receber os novos irrigantes. “É preciso orientar quais culturas são mais adequadas às condições de clima e solo no Estado e ter profissionais preparados para acompanhar a expansão da irrigação com a adoção de projetos que utilizem a água de forma eficaz. Na agricultura é necessário se planejar e aproveitar muito bem as oportunidades”.
Larissa avalia que mesmo o Estado contando com o Aquífero Guarani, não pode se ater apenas a essa reserva porque água subterrânea em questão de planejamento deve ser a última alternativa a ser recorrida, afinal, ao acessar essa reserva aumentam-se as possibilidades de contaminação dessa água. Ela observa que na gestão de recursos hídricos recorre-se a decisões compartilhadas entre o usuário, governo e sociedade civil.
Salve a água - Synara Broch explica que no Brasil existem dispositivos legais que buscam assegurar a qualidade e quantidade da água por meio de um sistema de gerenciamento baseado no modelo de gestão participativa e descentralizada. No caso dos recursos hídricos, na tentativa de equilíbrio de demanda e disponibilidade, as decisões são tomadas pelos usuários da água, representantes do governo e a sociedade, ou seja, decisão tripartite.
Na aplicação de alguns instrumentos de gerenciamento há o plano de recursos hídricos, já elaborado por Mato Grosso do Sul, que é um retrato da região que demonstra os recursos hídricos, suas possibilidades e restrições. Para a irrigação o estudo se concentra na microbacia.
Além desse plano, existe a outorga, que é como a licença ambiental dada ao empreendimento, só que nesse caso é uma licença de uso da água. Como a água é um bem de domínio público e não uma propriedade particular, o Poder Público deve zelar por ela, argumenta Broch. “Para que isso aconteça, haverá decisão prévia compartilhada pelo governo, usuário e sociedade. Essa outorga concede o uso de determinada quantidade de água por certo período de tempo, fazendo com que o usuário tenha garantia por parte do outorgante que terá a água concedida”.
Segundo ela, no papel está tudo bem engendrado: os planos, a outorga, enquadramento de qualidade, a cobrança que será investida posteriormente na bacia hidrográfica. Mas ainda não consta na lei, de acordo com a professora, a educação ambiental, o que dificulta a compreensão desses direitos e deveres, impedindo o cidadão de fazer suas exigências por desconhecer todos esses mecanismos.
Galbiati entende que a água é uma questão estratégica, mas no Brasil é caso de privatização. “Se a água é privatizada não haverá interesse em melhorar o nível freático da cidade, em parar de jogar esgoto no lençol freático, trabalhar com saneamento ecológico. O fluxo natural da água não é incentivado por falta de conhecimento do processo natural, mas sim por interesses econômicos”, adianta Adriana.
Ciclo da água – De acordo com Galbiati, os sistemas projetados pelo homem precisam funcionar conforme funcionam na natureza para que não sejam gerados distúrbios no ciclo da água, assim como na produção vegetal. Eles têm que estar capacitados a suportar extremos e ainda preservar a vegetação natural. “O problema da água não é o excesso do consumo, mas é como as pessoas interferem em seu ciclo natural”.
Nas regiões de Cerrado, como é o caso de Mato Grosso do Sul, há períodos bastante distintos de chuvas e secas durante o ano, sendo que a cobertura do Cerrado tem uma estrutura vegetal que está em equilíbrio com a capacidade do solo de armazenar água. “O Cerrado tem uma extensão muito grande, em torno de 2 milhões de quilômetros quadrados. Toda a água que cai nesse solo faz com que as árvores criem mecanismos para absorvê-la. Mesmo no período de seca as raízes longas das árvores do Cerrado buscam a água na profundidade do solo, deixando-o vivo”, esclarece Fehlauer.
O solo tem que armazenar a água para ser produtivo e para que isso aconteça também é necessário que haja barreiras como canais com vegetação e curvas de nível, permitindo que a água escoe lentamente para os rios infiltrando grande parte no solo. O lago artificial, na opinião de Adriana, também é uma alternativa, inclusive urbana como a Lagoa Itatiaia, localizada no bairro Tiradentes, em Campo Grande.
Para gerar sustentabilidade na agricultura é importante a preservação da mata ciliar (vegetação que ocorre nas margens de rios e mananciais) onde estão concentradas zonas alagadas, topos de montanhas e fundos de vales. Os produtores de regiões de agronegócio que produzem soja e onde gado é criado sabem disso e por muitas vezes custeiam treinamentos para técnicos e agricultores, porém, de acordo com Adriana, em outras regiões é perceptível a falta de gestão por meio da indiferença quanto à preservação das áreas.
Quando se fala em conservação de nascente e mata ciliar, é necessário ter em mente que essas vegetações necessitam de cobertura arbórea, no sentido de ajudar na captação de chuva, garantindo a infiltração da água no solo para alimentar os aquíferos, como explica o biólogo Rodiney Mauro, doutor em Ecologia Tropical pela Universidad de Los Andes, na Venezuela, e pesquisador da Embrapa Gado de Corte, em Campo Grande. Ele ressalta que o planejamento para o cultivo de soja, milho, sorgo, inclusive pastagens, deve levar em conta a adubação e manutenção para manter os níveis de produção que façam a unidade obter ganhos reais com o peso do bovino.
Para garantir o uso sustentável da água na agricultura, os produtores também têm que impedir o acesso do gado ao rio e por isso devem instalar os bebedouros em locais distantes para que o gado não beba a água direto do rio, já que as pisadas do rebanho na margem compactam o solo e provocam voçorocas.
Pela legislação, deve haver distância de 50 metros entre a pastagem e as nascentes, como explica Rodiney. “Em MS muitas propriedades perderam suas nascentes devido ao pisoteio do gado. Agora, com a proteção de 50 metros e a vegetação natural, a infiltração da água aumenta e o produtor deixa de ser simplesmente de carne ou soja e passa a ser de água, contribuindo para o aumento da sua quantidade que, no fim das contas, será utilizada pela população urbana”.
Alerta – O cenário de Mato Grosso do Sul está em um caminho muito perigoso, na avaliação de Fehlauer, já que do Cerrado no Brasil só restam apenas 20% dessa vegetação. No Estado, esse processo de perda, transformação da paisagem e intervenção humana está percorrendo o mesmo caminho. A ênfase nas políticas de desenvolvimento baseadas em poucos produtos agropecuários para exportação já sinaliza problemas ambientais decorrentes desse modelo. "Um sinal clássico disso foi o que aconteceu no rio Taquari, como o avanço da fronteira agrícola causando o seu assoreamento e assim afetando o Pantanal. Em certa medida, a perda das condições ambientais de conservação da água, seja pela redução da biodiversidade e desestruturação dos solos pelo modelo agropecuário, já tem comprometido a qualidade da água na maioria dos cursos de água do MS".
Segundo Tércio Fehlauer, Mato Grosso do Sul está localizado em uma região crítica que é a confluência de três biomas (Mata Atlântica, Cerrado e Pantanal), com todas as suas complexidades, inclusive a complicada equação de como adequar a produção agrícola e atenuar os danos da intervenção humana, também chamada "pegada ecológica", de qualquer atividade produtiva nestes ambientes.
“É preciso rever os métodos de agricultura e proteger o solo e a água. A relação da agricultura com a água é direta porque só se mantém água no sistema se há condições de retê-la. Temos dois problemas principais: aumentar a capacidade de retenção da água no ambiente e a diminuição do gasto dela. No Brasil, toda a quantidade de água destinada para o consumo das cidades é de aproximadamente 8% apenas. A agropecuária é, portanto, o campo mais estratégico para repensar a nossa relação com a água. Se não considerarmos isso e houver omissão para não confrontar esses interesses econômicos sem levar em conta os interesses sociais e ambientais, estaremos ignorando o fato de que existem outras maneiras possíveis de se produzir abundantemente, como por exemplo, nos sistemas agroecológicos de produção e na agricultura diversificada das agroflorestas”, emenda Fehlauer.
Pesquisas - Na Embrapa Gado de Corte existem diversas casas de vegetação (estufas) para avaliar cultivares produzidos ali, no caso a braquiária (gênero usado em pastagens). Conforme Rodiney, no local há uma forma controlada de irrigação para que se repita o que ocorre normalmente na natureza.
É comum muitos acharem que a atividade produtiva possa degradar o meio ambiente, porém se for realizada de maneira correta servirá como uma contribuição do produtor para aumentar a quantidade de água e conservar o ambiente como um todo. “A Embrapa tem trabalhado com o produtor desde as melhores cultivares de gramíneas que ocupam bastante a cobertura do solo, evitando que fique exposto. Com isso, a erosão é diminuída”, ressalta Rodiney.
Distante dali, em Aquidauana, município localizado a 131 km de Campo Grande, o professor Elói Panachuki, doutor em Produção Vegetal pela UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados) e responsável pelo laboratório de Manejo e Conservação do Solo e da Água da UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul), desenvolve projetos de pesquisa com alunos do curso de Agronomia, que avaliam os sistemas de manejo do solo que podem reduzir os impactos negativos que a exploração agropecuária pode proporcionar ao meio ambiente. Os resultados mostram que o uso racional da água é de fundamental importância para a elevação da produtividade agropecuária.
“Observamos que em condições de exploração onde os princípios conservacionistas não são utilizados, existe a degradação irreversível dos recursos solo e água, pois as perdas por erosão hídrica são muito superiores à tolerância a perdas de solo que um determinado ambiente possa ter. Em estudos verificamos que as perdas de solo, por erosão hídrica, podem chegar a valores maiores que 100 toneladas por hectare durante o período de um ano, enquanto a capacidade de formação do solo é inferior a 10 toneladas por hectare durante um ano. Estas perdas por erosão hídrica diminuem a quantidade de água que poderia ser infiltrada no local de ocorrência da chuva e promovem assoreamento e contaminação de rios, lagos e mananciais”.
Questionado sobre a possibilidade de a água acabar, Panachuki argumenta que diversos estudos têm demonstrado que o uso irracional da água e a degradação das áreas com nascentes diminui sua disponibilidade para determinadas regiões. “A agricultura pode ajudar na manutenção dos recursos hídricos desde que as práticas de manejo da agropecuária sejam sustentáveis ao longo do tempo”, conclui.