Ano chega com novo feriado nacional para propor reflexão e comemorar resistência
Será a primeira vez que o Brasil todo vai parar e comemorar com feriado o Dia da Consciência Negra
Na parede de casa, Sérgio Antônio da Silva, mais conhecido como Michel, 88, há uma amostra da trajetória pessoal e da Comunidade Quilombola Tia Eva, onde ele nasceu e foi criado. Os recortes de jornal e fotos são exemplo da história da formação do local e de luta pela perpetuação da memória e eterna resistência.
Em 2024, a luta ganha importante reforço. A partir deste ano, o Dia da Consciência Negra passa a integrar o calendário nacional de feriados. Para além de uma folga, a expectativa é que o 20 de Novembro se torne, também, data de reflexão, de reconhecimento da representatividade da população negra na formação do Brasil, sendo a oportunidade de conquistar mais espaços e levar essa importância a toda a sociedade.
“Durante 500 anos a gente viveu a centralidade na branquitude”, avaliou a professora e presidente do Grupo Tez (Trabalho Estudos Zumbi), Bartolina Ramalho Catanante, explicando que inclusão da data em calendário nacional ajuda a colocar o foco na importância da etnia na formação da sociedade brasileira, além da branca europeia e, também dos indígenas, esta, que também luta pelo reconhecimento.
O dia 20 de novembro foi escolhido por ser a data de morte de Zumbi dos Palmares, símbolo de luta e resistência da comunidade. O Dia da Consciência Negra foi instituído oficialmente pela Lei 12.519/2011.
Antes da sanção presidencial, publicada em Diário Oficial da União no dia 22 de dezembro, apenas quatro cidades de Mato Grosso do Sul adotavam o Dia da Consciência Negra como feriado nacional: Corumbá, Ladário, Itaporã e Jaraguari.
Em 2010, o então deputado federal Amarildo Cruz (PT), falecido em 2023, havia proposto projeto de lei instituindo a data como feriado estadual, sendo aprovada na Assembleia Legislativa.
Porém, em 2011 foi contestada judicialmente pela Fecomércio (Federação do Comércio de MS), que alegou prejuízo às relações trabalhistas. A lei foi derrubada e saiu do calendário do Estado.
“A população negra participou e participa da construção desse país, então, nada mais justo do que reconhecer isso também a partir de um feriado nacional”, disse a coordenadora do Fórum Municipal de Cultura e Coordenadora do Fórum Permanente das Entidades do Movimento Negro de MS, Romilda Pizani. Segundo ela, a inclusão em calendário nacional significa celebração, mas também reflexão. “É dia para falar da cultura para parcela da sociedade que não reconhece a cultura ou a história. Isso é importante porque agora, vão ter que dizer o porquê do feriado”, avaliou.
A sanção vem na esteira de autorreconhecimento evidenciado a partir dos resultados do Censo 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
As mudanças nas composições étnicas são visíveis. Em 2010, a população branca representava 47,29% do total, enquanto em 2022 essa porcentagem diminuiu para 42,38%. No mesmo período, a população preta aumentou seu percentual, passando de 4,9% em 2010 para 6,5% em 2022. Já a população parda, que sempre teve a maior proporção, cresceu 3,34%, passando de 43,59% em 2010 para 46,93% em 2022.
Bartolina Catanante avalia que isso faz parte de processo vindo de políticas afirmativas, como a lei de cotas, por exemplo. “O ingresso na universidade contribuiu muito para isso ser pautado dentro da educação”.
Em efeito cascata, também cita o fenômeno mais recente, quando a mídia olhou para a negritude. Um exemplo foi a novela “Vai na Fé”, em um ano em que todos os protagonistas de novelas da Globo são negros. “Isso impacta na sociedade, na educação, na economia”, disse. Romilda Pizani, aliás, realizou um workshop com a equipe de filmagem e elenco da novela “Terra e Paixão”. A personagem principal é Aline, mulher negra que luta para manter suas terras, cobiçadas pelo produtor rural branco.
Consequências - Bartolina e Romilda acreditam que a data pode ser a oportunidade de se colocar em prática, de forma efetiva, a Lei 10.639/2003, que alterou artigos da Lei 9.394/1996 e tornou obrigatório o ensino sobre a história e cultura afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares. O projeto foi apresentado pelo então deputado federal Ben-Hur Ferreira (MS).
“Penso que continua sendo o nosso maior desafio. Agora, com essa data no calendário, acredito que vamos conseguir trabalhar melhor a lei nos espaços educacionais”, diz Romilda. “Muitos profissionais da área, infelizmente, relacionam a lei sobre cultura afro-brasileira com religiosidade e esse viés acaba sendo empecilho para que a lei seja aplicada em sala de aula”.
O professor Izadir Francisco de Oliveira, coordenador da Escola Estadual Joaquim Murtinho, em Campo Grande, também cita o racismo, que marginaliza as culturas religiosas de matriz africana, como um fator de resistência à lei.
Oliveira entrou na escola em 2005 e, no ano seguinte, começou a trabalhar a implementação das diretrizes da lei, por meio Projeto Diversidade Étnico Racial e Cultural. “A gente vem, na medida de possível, fazer com que as pessoas negras que estão nas escolas, que são cidadãos orgânicos, que estão na sociedade, elas têm que saber de onde vieram, como vieram”, avaliou. “A escola é laica, então é esse tipo de trabalho que tem que ser feito, o respeito ao outro; simplesmente mostrar como a ciência, a história, a cultura, e a filosofia africana estão presentes no nosso dia a dia”.
Na comunidade Tia Eva, em Campo Grande, a professora de História, Vânia Lúcia Baptista Duarte, 48 anos, também destaca que a educação é fundamental para fazer com que as pessoas se conheçam. “Não à toa as pessoas estão se reconhecendo pretas, estão conhecendo sua história”. Cita que a data é momento de mostrar o protagonismo de Zumbi por sociedade mais igualitária.
Ilustre morador da comunidade, Sérgio Antônio da Silva lembra do passado de dor e sofrimento da população negra, mas que hoje em dia é preciso celebrar e reconhecer a importância da data. “É preciso reconhecimento e incentivo por parte do governo em dar mais acesso às pessoas pretas à educação”. Michel cita o exemplo dentro de casa: as quatro filhas tiveram acesso ao estudo e o neto, hoje, é bolsista nos EUA. “São pessoas como eles que conseguem acessar mais locais que eu não conseguiria”.
Na sala de casa, na parede de Michel, a cronologia é demonstração da importância da preservação da memória da comunidade, agora, com perspectiva de extrapolar esses espaços.
"Aí que, talvez, seja o nosso ganho; porque nós vamos estar recontando essa história, não somente a partir da boca dos militantes do movimento negro, das pessoas que são responsáveis pela pauta racial, e sim a partir de uma fala comum, porque essa data, agora, está no calendário nacional", resume Romilda Pizani.
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