Associação negra nasceu da fé de Maria Rosa e abriu as portas para Campo Grande
Associação atende 70 crianças com oficinas culturais e educação antirracista muito antes de o termo existir
Em 1922, José Soares Magalhães nasceu de cinco meses, em local afastado na zona rural de Coxim, a 253 quilômetros de Campo Grande. Mirrado, cabia dentro de caixa de sapato e a sobrevivência do bebê era considerada quase zero. A mãe, Maria Rosa da Anunciação, apelou pela vida do filho a São João Batista, iniciando tradição religiosa que atravessou os anos e, hoje, é resistência negra e serviço à comunidade em Campo Grande.
A Associação Familiar da Comunidade Negra São João Batista é localizada no Bairro Pioneiros, zona urbana da Capital. O endereço pode causar estranheza para quem imagina que comunidade quilombola tem relação somente com território em zona rural.
Pelos dados do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), essas comunidades se caracterizam por grupos étnicos, constituídos por população negra rural ou urbana, descendentes ou ex-escravizados que se autodefinem por relações específicas como território, mas também com a ancestralidade, as tradições e práticas culturais próprias.
A bisneta de Maria Rosa, Rosana Anunciação Franco, 50 anos, conta o caminho trilhado pela família para se autodefinir como quilombola. Ela é presidente de honra da associação, depois de ter comandado a entidade por 5 anos. Diz que a partir da sobrevivência do tio, Maria Rosa passou a cumprir a promessa, realizando terço seguido de festa típica, nos dias 23 e 29 de junho.
Em 1945, a família migrou para Campo Grande em busca de melhores condições de vida. De Coxim, vieram mais de 20 pessoas. “Só minha bisavó tinha 13 filhos; como tinha muita gente, cada um foi para um canto, ela foi morar no Bairro Monte Líbano”. A tradição religiosa continuou e a vizinhança chamava de “Festa dos Trindade”.
Depois de anos no comando da tradição, Maria Rosa passou o bastão. O filho, José Soares, considerado o milagre de São João, assumiu os trabalhos até o seu falecimento.
Maridalva Delfina Anunciação, 77 anos, mãe de Rosana e atual presidente da associação, diz que a viúva de José ainda organizou a festa tradicional por dois anos. Adoentada, pediu que José Reginaldo de Anunciação, neto de Maria Rosa, assumisse a festa. “Meu marido falou ‘vou ficar com essa missão’”, lembra Maridalva. A fé, segundo ela, fez a família toda continuar abraçando a causa.
Rosana diz que o pai começou a organizar a festa na década de 1980, mas foi somente entre 1997 e 1998, que Aleixo Paraguassu e outros integrantes do movimento negro de Mato Grosso do Sul os despertaram para a importância do reconhecimento do território quilombola.
Segundo Rosana, na São João Batista, o processo passou pelo autorreconhecimento e a certificação da comunidade. No caso deles, não caberia titulação, por não se tratar de posse histórica da terra. Da história da família, mapearam a vinda de Minas Gerais, e, antes, dos bantos, oriundos da África Central.
Desde 1990, passaram a ocupar imóvel no Bairro Pioneiros, de 90 metros quadrados. A associação nasceu juridicamente no dia 15 de novembro de 2000, formada por integrantes das famílias Anunciação e Bispo, estes vindos da comunidade Dos Pretos, de Terenos.
Seis anos depois, a comunidade recebeu a certificação da Fundação Cultural Palmares, que faz parte do processo de reconhecimento federal, podendo auxiliar para financiamentos e convênios.
Abrindo as portas - Desde a década de 2000, o comerciante José Reginado começou a realizar sonho de desenvolver projeto voltado para as crianças da comunidade, para que tivessem espaço livre de preconceitos. “Ele contava para a gente que, quando saía para brincar com os irmãos na praça, as mães tiravam os filhos de perto; isso para ele era o fim”. Sem ainda existir o termo, ele trabalhava a educação antirracista. “Ele queria tratamento igualitário e que pudesse ensinar as crianças com respeito”.
Com o passar dos anos, a família viu a necessidade de abrir as portas da comunidade quilombola. “Quando colocavam as nossas músicas na dança, algumas pessoas passavam e jogavam pedra, falavam que a gente estava fazendo macumba, sem nem ao menos entender, saber ou respeitar as religiões de matriz africana”. Para a família de Rosana, um sinal do medo gerado pelo desconhecimento.
Os associados começaram a dar cursos abertos no bairro. Um dos irmãos dava aulas de futebol; outra irmã atuava com recreadora e uma tia palestrava sobre diversos temas.
O trabalho formiguinha deu certo e hoje se tornou o Projeto Social Curumim Pé de Ouro, que atende 70 crianças e adolescentes, de 6 a 15 anos, em diversas oficinas, como dança afro, cidadania, sustentabilidade, desenho, percussão, artesanato, violão, libras e fotografia, esta para pessoas de até 20 anos.
Também há assistência psicológica e apoio familiar, já que há casos de crianças que vêm de lares fragilizados. Uma das exigências é que os atendidos estejam regularmente matriculados em escolas públicas.
O projeto já teve apoio do Criança Esperança, da Unicef e hoje conta com parceria da prefeitura da Capital, Sesc Mesa Brasil, Senac e Associação Espero. Hoje, as contribuições são bem-vindas para os novos projetos ou retomadas de trabalhos que tiveram que ficar pelo caminho: o ônibus usado pelo coral, por exemplo, hoje é sucata encostada no gramado da associação.
No dia da visita à comunidade, estavam em funcionamento as oficinas de férias, que iriam durar até início de fevereiro. De um lado, os pequenos brincavam com balões; do outro, os jovens estavam na aula de percussão. Vanessa Dias Nascimento, 22 anos, acompanhava o batuque para entrar no ensaio, com passos de dança afro.
A jovem participou do projeto dos 6 aos 13 anos. Voltou dando apoio voluntário, depois, como educadora. “Me ajudou a ter conhecimento, perder timidez, me tornei pessoa sociável”, diz. Vanessa se formou em Pedagogia e hoje atua como dançarina no projeto. A abordagem histórica e social da cultura negra também a despertou para a luta contra o racismo e o preconceito. “Isso não tinha na escola regular”, lembra.
O patriarca, José Reginaldo, morreu em abril de 2020, mas teve o trabalho perpetuado pela esposa, pela filha e, agora, pelo neto. João Trindade Delfino Anunciação, 24 anos, é coordenador das oficinas do Projeto Curumim Pé de Ouro.
Filho de Rosana, João foi criado vendo a tradição e o trabalho da associação, sendo mais uma geração participando ativamente da comunidade. “Antes de eu ter idade, já estava no meio de tudo, faz parte de mim”. Diz que a intenção é ampliar o atendimento para idosos e cursos profissionalizantes para adolescentes acima dos 15 anos.
Invisível – Assim como São João Batista, outras comunidades também não passam pela titulação do Incra, mas tem a certificação da Fundação Cultural Palmares, sendo Ourolândia, de Rio Negro; Dos Pretos, de Terenos e Santa Tereza/Família Malaquias, de Figueirão.
O coordenador estadual da Fenaq (Federação Nacional das Associações Quilombolas de MS), Valdecir Amorim, explica que todas são associações, cada uma trabalhando com algum direcionamento, como projetos culturais. Ter a certificação ou titulação garante a acessos a créditos em projetos de agricultura familiar, por exemplo. “Sem isso, é invisibilizado, é como ter um bem imóvel e não ter a garantia”.
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