Vizinha do "ET Bilu", comunidade quilombola quer ganhar com ecoturismo
Furnas da Boa Sorte faz parcerias em busca de autonomia e melhor qualidade de vida para moradores
O imenso paredão do Morro de São Sebastião anuncia aos visitantes a chegada à comunidade quilombola Furnas da Boa Sorte, em Corguinho, a 99 quilômetros de Campo Grande. As terras representaram porto seguro para negros migrantes de Minas Gerais no fim do século 19, fugitivos da escravidão e, hoje, simbolizam o futuro, com o projeto de fortalecimento do turismo como nova via econômica dos moradores.
Enquanto os projetos ainda estão em elaboração, a mão de obra, principalmente a masculina, é absorvida pelo polêmico vizinho: o projeto Dakila, idealizado por Urandir Fernandes, que ganhou projeção nacional após propagar o “ET Bilu” e, posteriormente, a “revelação de Ratanabá”, a cidade perdida no meio da Amazônia.
A comunidade Furnas da Boa Sorte é formada por cerca de 70 famílias, que residem em quatro regiões dentro da área: Boa Sorte e São Sebastião, que integram os 1.413,08 hectares, terras parcialmente tituladas, além de Carrapato e Caridade, estas, com titulação distinta e finalizada. Todas são formadas por descendentes dos fundadores e agregados, como maridos e esposas que vieram de outros municípios. Em muitos casos, há casamento entre primos, por conta do entrelaçamento das famílias.
A professora Elaine Matheus Teodoro, 36 anos, que preside a Associação de Desenvolvimento e Defesa dos Descendentes de Bonifácio Lima Maria, José Mathias Ribeiro e João Bonifácio Catarino das Furnas da Boa Sorte ( ADDDFBS), explica que a agricultura em prática na comunidade é de subsistência.
Para os homens da comunidade quilombola, a principal fonte de renda é o trabalho nas obras do vizinho do projeto Dakila, como construção das casas e de uma pirâmide e, as mulheres, no serviço doméstico naquele local. “Esse número caiu bastante depois que veio parceria na coleta de sementes”, diz.
A iniciativa é executada em parceira com a WWF-Brasil e o Instituto Mamede, e integra o projeto “Municípios Sustentáveis, protegendo o berço das águas do Cerrado e as cabeceiras do Pantanal”. As mulheres coletam sementes de espécies nativas do Cerrado, como jatobá, moringa e baru, para serem usadas em projetos de reflorestamento pelo país.
“É fonte de renda firme”, comemora Elaine. O projeto começou em 2017, mas parou durante a pandemia, sendo retomado há cerca de dois anos. O grupo que integra a coleta é formado por 40 pessoas, 35 delas, mulheres. “Já teve mês que a coleta chegou a 17 toneladas”. O trabalho obteve renda de R$ 100 mil em um dos anos de atividade.
A coleta de sementes faz parte de nova fase ambicionada pela comunidade. O olhar de Elaine se estende para as terras vizinhas, que alcançaram o patamar desejado pelas Furnas da Boa Sorte: o ecoturismo.
A mesma parceria da coleta das sementes também auxilia na implantação do TBC (Turismo de Base Comunitária). Furnas da Boa Sorte localiza-se no planalto da Serra de Maracaju e é área de transição entre Pantanal e Cerrado. Além da importância para a conservação dos biomas, é rica em belezas naturais, com trilhas e cachoeiras, também sendo local ideal para quem gosta de observar pássaros.
Elaine conta que a associação encaminhou à Fundtur (Fundação de Turismo de Mato Grosso do Sul) para auxiliar na implantação de receptivo na sede da Furnas da Boa Sorte. “Além de receber os turistas, também vamos ter controle de quem chega aqui e fazer feirinha com artesanato”, diz, como arte em telha e as peneiras, estas que eram usadas para separação de arroz e hoje são feitas como elemento decorativo.
Antes da chegada dos turistas, a comunidade tem que resolver um dos principais entraves: o abastecimento de água, insuficiente até para os moradores. Dois poços estão em funcionamento, o último, furado há 14 anos. Desde então, o número de residentes aumentou.
A presidente da associação conta que até parceria com a prefeitura foi realizada, que doou bomba, cano para instalação, mas a comunidade esbarrou no custo para execução do serviço. São R$ 90 mil, sendo que R$ 50 mil seriam arcados pela concessionária Energisa e os R$ 40 mil restantes pelos quilombolas. “Como que a gente vai reunir isso?”, disse. A falta de água suspendeu até projeto de horta ecológica. “A gente teve que parar, ia desabastecer a comunidade”.
“Troncos velhos” – A comunidade é formada a partir da vinda de Bonifácio Lima Maria, José Mathias Ribeiro e João Bonifácio Catarino.
Artigos acadêmicos e outras pesquisas históricas trazem divergências sobre as circunstâncias da vinda dos três. Alguns textos falam que eles vieram com os escravistas, estes fugidos de Minas Gerais, no final do século XIX, por conta de crimes praticados naquele estado e trouxeram os escravizados.
Aqui, os escravizados viram oportunidade para a fuga. Outra versão é que vieram para lutar na Guerra do Paraguai, como parte de acordo com governo em troca da liberdade. Depois, ficaram por aqui em busca de novas oportunidades.
Há ainda estudos que dizem que eles chegaram depois da promulgação da Lei Áurea, que data de 13 de maio de 1888, atraídos por oportunidades de trabalho. Eles foram para a Fazenda Taboco, do coronel Zelito.
Para os descendentes, as histórias se fundem. O produtor rural Carlito Ribeiro Maciel, 65 anos, bisneto de José Matias Ribeiro, ouviu dos “troncos velhos”, como são chamados os mais antigos, a versão de que eles vieram fugidos de Minas Gerais e, chegando em terras sul-mato-grossenses, foram trabalhar na Fazenda Taboco. Pelos serviços prestados, receberam as terras nas Furnas da Boa Sorte.
“Todo mundo queria seu lugarzinho e fazendeiro não se interessava porque eram furnas”. Aqui, vale explicação: o termo furna significa caverna ou cova, sendo usado para designar cavidade no terreno ou escorregamento de encosta. É local de difícil acesso, e mesmo nos dias atuais, missão ainda mais árdua em dias de chuva.
“Isso aqui foi muito sofrido para meu bisavô”, conta Carlito. Ainda pequeno, se lembra de que não havia estrada para Rochedo e que levava de 6h a 7h de caminhada para chegar ao município. “A gente não tinha recurso para nada, a gente se alimentava do que plantava, se precisasse de médico, era difícil, mas a gente era unido”. Para os antigos regularizarem as terras, era necessário ir a Cuiabá, a cavalo. O título foi conquistado em 1905, saindo em definitivo em 1915.
Carlito foi presidente da associação por oito anos e participou do processo de regularização das terras feito pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Isso foi necessário depois que parte dos hectares foi tomado por grileiros ou vendida irregularmente por descendentes.
Não era direito deles, nem tinha inventário, venderam a troco de nada”, lembrou. “Quando a gente criou associação, descobriu que terra de negro e de índio ninguém toma", diz Carlito Maciel.
Hoje, segundo Carlito, ainda há cerca de mil hectares de terras em posse ilegal de fazendeiros. “Isso aqui é terra de negro”, afirmou, com punho fechado e demonstrando força na fala.
O ex-líder da associação comemora os novos tempos, com a chegada da tecnologia, e acredita que o turismo é o futuro da associação, mas lamenta pelo que ficou nos tempos passados.
“A juventude nem conhece a nossa história”, diz, acrescentando que as novas gerações também não se interessam pelas atividades que mantiveram a comunidade por anos.
“Naquela época, era normal roçar, queimar e plantar, hoje nosso jovem não vai mais fazer isso, ninguém quer plantar, querem de pedreiro para frente”, diz.
Quem também é saudosista é Adão Lino Maria, 80 anos. “Nasci e estou aqui no dia de hoje, amanhã a gente não sabe”, diz o produtor rural, risonho. Vive até hoje da agricultura de subsistência, plantando milho, arroz, cana e rama de mandioca. “Toda vida foi assim”.
Adão não se lembra de brincar na infância, mas de trabalhar a partir dos 10 anos. Também fala da dificuldade de locomoção.
Era difícil sair daqui, meu Jesus; no tempo dos troncos velhos, lembro que usava carro de boi, levava uma semana para chegar em Aquidauana, quase um mês para Campo Grande”, conta Adão Lino.
Sorri ao rememorar o encontro com a esposa. “Me engracei por ela, e ela fugindo, até que chegou na conclusão que eu queria”. Ele e Maria de Lourdes, com 87 anos, tiveram 7 filhos, 14 netos e 4 bisnetos.
O idoso fica sério e junta as mãos para fazer uma crítica. “Hoje falta mais união, era difícil semana que não tinha visita de família na casa do outro, agora passa mês”, lamenta.
Do passado, relembrou a arte de trançar a peneira com taquara, ensinamento passado pela irmã mais velha, que aprendeu com a mãe. Além dele, a neta, Maria Rosa Lino Vargas, 20 anos, mantém a tradição. Aprendeu no curso oferecido em parceria do Ibiss e Sedhast (Secretaria Estadual de Assistência Social e dos Direitos Humanos). “É da cultura, né? Importante”, diz a jovem.
Ramon Catarino da Silva, 59 anos, é da 4ª geração de Bonifácio Lino Maria. Nasceu em Rochedo, morou em Boa Sorte, foi embora e voltou em definitivo há cerca de 30 anos, para cuidar da mãe idosa. Se casou com descendente de João Bonifácio e ali viveu, plantando mandioca, banana, farinha e cana. Agora, está aposentado, por invalidez, por conta de problemas de saúde.
“Acho que precisa conscientização dos mais novos, tem muita gente de olho aqui nessas terras, se não valorizar, vai ser trabalho perdido.”
Quem também saiu e fez o caminho de volta foi o tratorista Antônio Caetano da Silva, 50 anos, que está em definitivo desde 2004. Hoje, trabalha nas terras do projeto Dakila e tem bar que abre no fim da tarde. “Viver aqui para mim é tudo”, diz. Com o filho, Luan, 13 anos, também passa o tempo, tocando violão enquanto o menino mostra destreza na sanfona, que aprendeu “de ver na internet e de mexer”.
Tereza Aparecida da Silva, 52 anos, se casou com descendente de José Bonifácio e se mudou para o local há 27 anos. Planta mandioca, cana e banana para subsistência. O marido é motorista de saúde e fica à disposição para levar alguém que precise ir ao posto, em Corguinho. “Aqui é tudo, é sossegado, temos bastante amizade”.
A filha, Isabelly da Silva Pereira, 8 anos, também gosta da vida na Boa Sorte. “Aqui tem paz”, diz. Gosta da natureza e que pretende fazer faculdade de Medicina Veterinária.
A vice-presidente da associação Cleuza da Silva, 42 anos, também seguiu o caminho de muitos. Nasceu na comunidade, foi embora e voltou. “Muitos até querem voltar, mas não tem esperança de trabalho, precisa de mais fonte de renda aqui”, diz. Também fala que é preciso de mais escola. Hoje, tem ensino do pré ao 5º ano, mas, a partir do 6º ano, é preciso ir para Taboco, percorrer distância de quase 30 quilômetros.
Com Elaine, a presidente da associação, a história foi um pouco diferente. Nasceu em Campo Grande, morou no Bairro Aero Rancho e voltou para a comunidade com os pais, aos 12 anos, na época que as terras foram regularizadas pelo Incra.
“Eu não queria vir, foi horrível, queria ficar em Campo Grande”. Estava na 6ª série, às 3h pegava caminhão para ir à escola e, na metade do caminho, ia com outra carona, a do leiteiro, para a instituição. “Na 8ª, já tinha ônibus”.
Saiu da comunidade e foi trabalhar para a prima em Campo Grande. Cursava Pedagogia quando outra parente a chamou de volta à Boa Sorte para dar aulas. Conseguiu transferência para o polo da universidade em Corguinho e foi trabalhar como contratada. Depois, passou no concurso, sendo transferida para a comunidade. Em uma das eleições, quando perguntaram na reunião quem poderia se candidatar, se manifestou para ver se atraía outros interessados. “Mas só eu levantei a mão”, lembra, rindo.
Casou e teve dois filhos, Arthur, 11 anos, e Elizer, 2 anos. Fincou raízes na comunidade, que almeja como futuro para a família. “Aqui é nossa casa”.
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