A digitalização da leitura e o consumo de informações
A 6ª edição da Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Instituto Pró-Livro, traz dados importantes sobre o consumo de informações, os conteúdos disponíveis nos livros e o comportamento de seus leitores. O objetivo central desta edição é compreender o comportamento do leitor, analisando a intensidade, as formas, as limitações, as motivações, as representações e as condições de leitura, além do acesso ao livro – impresso e digital – pela população brasileira nos dias atuais.
Entre os diversos aspectos que merecem atenção, destaca-se a definição apresentada pela pesquisa sobre quem é considerado leitor e quem é considerado não leitor. Segundo o levantamento, é classificado como leitor aquele que leu, inteiro ou em partes, ao menos um livro de qualquer gênero, seja impresso ou digital, nos últimos três meses. Em contrapartida, é considerado não leitor quem declarou não ter lido nenhum livro ou parte de livro nesse mesmo período, mesmo que tenha lido nos últimos 12 meses. Essa distinção serve como ponto de partida para entendermos os critérios da pesquisa. Contudo, limitar a definição de leitura e de leitor a esse objeto da cultura material, o livro, pode restringir a análise de um fenômeno muito mais amplo.
Definir atualmente o que é um leitor é algo singular e desafiador. Essa questão tem sido impactada por mudanças tecnológicas e culturais desde a popularização de meios de comunicação como o rádio, o cinema e a televisão. Hoje, a internet e as ferramentas de inteligência artificial tornam essa definição ainda mais difusa e complexa. A pesquisa adota como parâmetro o acesso ao livro, seja ele físico ou digital, mas será que isso basta para capturar a realidade da leitura no contexto atual? O consumo de informação acontece em múltiplos formatos e ambientes. Muitas pessoas leem artigos em blogs, notícias em aplicativos, postagens em redes sociais ou até mensagens em plataformas digitais. Essas formas de leitura, embora não estejam necessariamente vinculadas ao livro, têm um papel significativo na maneira como nos conectamos com o mundo e adquirimos conhecimento. Talvez seja o momento de ampliar os horizontes e reconsiderar como definimos a prática da leitura.
Um dado relevante desta edição da pesquisa é o fato de, pela primeira vez, termos 53% dos entrevistados declarando que não são leitores, enquanto 47% afirmaram que são. Essa mudança no gráfico é significativa, mas não deve ser vista necessariamente como negativa. O que estamos observando é uma transformação no perfil de consumo de informação, algo que a pesquisa reflete em seus indicadores. Outro aspecto interessante é a queda acentuada na média de livros lidos pela população. Pela primeira vez, esse número caiu para 3,96 livros por pessoa em 12 meses, abaixo do patamar observado em 2019, que era de 4,95. Essa redução de quase um livro inteiro na média pode parecer alarmante, mas também merece ser interpretada sob a luz das mudanças culturais e tecnológicas que vivemos.
O ambiente digital é uma peça-chave na discussão sobre leitura. A pesquisa aborda a questão do consumo de informações nesse meio, algo que não pode ser ignorado. Hoje, mais do que nunca, a leitura ultrapassa as fronteiras do livro impresso ou digital em formato tradicional. O que vemos é uma fragmentação do ato de ler: textos curtos, hipertextos, comentários e mensagens em plataformas digitais são parte da rotina de muitos, especialmente dos mais jovens. Isso não significa que a leitura tradicional de livros tenha perdido completamente o valor, mas aponta para um novo cenário, onde coexistem diversas formas de interação com textos e informações. Essa pluralidade de formatos é um desafio, mas também uma oportunidade de ampliar nossa visão sobre o que significa ser leitor. Em um mundo cada vez mais conectado, é fundamental analisar como o digital influencia essas mudanças e quais impactos podem ser percebidos na forma como nos relacionamos com os textos e os livros.
Um dos pontos interessantes trazidos pela pesquisa é o aumento no porcentual de leitores que consomem literatura por meios diferentes dos livros. Gêneros como contos, poesias, crônicas e romances estão sendo lidos em plataformas digitais, como redes sociais, blogs, sites, jornais e revistas. Esse dado reflete o crescimento do consumo de textos curtos e fragmentados em ambientes digitais. Além disso, o ambiente doméstico continua sendo o principal local de leitura. Isso evidencia que a leitura está ligada a espaços privados, em contraste com a menor presença de leitores em bibliotecas e outros espaços públicos.
A pesquisa também explora como as pessoas utilizam seu tempo livre, e os resultados reforçam o papel central da internet nesse cenário. Entre os entrevistados, 88% declararam ter acessado a internet nos últimos três meses, enquanto 93% dos leitores afirmaram ser usuários ativos da rede. Isso demonstra que, para a grande maioria, o consumo de informações está diretamente relacionado ao uso de dispositivos conectados. Quando perguntados sobre o que mais gostam de fazer no tempo livre, os respondentes apontaram o uso de redes sociais, troca de mensagens em aplicativos como WhatsApp e Facebook Messenger, e assistir a vídeos e filmes. Por outro lado, apenas 20% mencionaram a leitura de livros, seja em papel ou formato digital. Esse dado ressalta como a leitura tradicional enfrenta desafios em competir com outras formas de entretenimento mais imediatas e acessíveis.
Além disso, a pesquisa apresenta dados relevantes sobre a leitura em formatos digitais. O porcentual de pessoas que conhecem e consomem livros digitais cresceu de 30% em 2011 para 48% em 2024, mostrando um avanço expressivo dessa mídia. Entre os dispositivos mais utilizados, o celular lidera com 75% das preferências, seguido por computadores, tablets e e-readers. Apesar disso, o formato físico ainda predomina: 83% dos leitores relataram que o último livro que leram foi em papel, contra apenas 16% no formato digital. Esses números reforçam a preferência cultural pelo livro impresso, mesmo com o aumento da popularidade dos dispositivos digitais.
A forma de acesso aos livros digitais também é um ponto relevante. Muitos leitores afirmaram baixar os títulos gratuitamente, embora o pagamento por downloads venha crescendo gradualmente. Esse comportamento reflete tanto a expansão das plataformas de acesso quanto os desafios de monetização desse mercado. Outro dado importante é o aumento no consumo de audiolivros e podcasts. Embora ainda sejam nichos no Brasil, essas formas de conteúdo têm ganhado espaço, especialmente entre aqueles que buscam conciliar a leitura com outras atividades cotidianas. A pesquisa destaca que, embora tímido, esse mercado tem potencial de expansão, acompanhando tendências globais.
Entre os dados apresentados pela 6ª edição da Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, a abordagem sobre as bibliotecas e seu papel na sociedade traz considerações importantes. A pesquisa aponta percepções e hábitos relacionados a essa instituição, destacando aspectos e os desafios que ela enfrenta no Brasil.
Segundo a pesquisa, a biblioteca é majoritariamente vista como um lugar para pesquisa e estudo, indicação feita por 59% dos respondentes. Essa percepção reflete uma característica enraizada no imaginário popular: a biblioteca como espaço escolar, acadêmico, funcional, voltado ao aprendizado formal. Em seguida, ela é associada a um lugar para todas as pessoas e para o empréstimo de livros. Embora a ideia de biblioteca como espaço de acesso democrático à informação esteja presente, há uma desconexão entre essa percepção e a prática. O relatório mostra que 75% dos brasileiros não frequentam bibliotecas e, entre os não frequentadores, 39% afirmam que “nada os faria ir a uma biblioteca”. Outros 13% indicam que frequentariam mais se houvesse uma biblioteca mais próxima ou de fácil acesso. Essa falta de interesse sugere uma falha na valorização da biblioteca como parte essencial da formação social, da democracia e do fortalecimento comunitário. Isso aponta para a necessidade de repensar o papel das bibliotecas e sua interação com as comunidades.
A pesquisa também revela uma redução na frequência às bibliotecas desde 2019. As bibliotecas escolares continuam sendo as mais frequentadas, seguidas pelas bibliotecas públicas e universitárias. Ainda assim, a diminuição no uso desses espaços evidencia um distanciamento progressivo das pessoas em relação à instituição. Essa tendência é um alerta, mas também uma oportunidade. É preciso repensar o que as bibliotecas representam e como podem se reinventar como centros de convivência, aprendizado e cultura em meio a esse nosso cenário do digital. Para isso, é essencial compreender o que a sociedade atual valoriza e integrar essas demandas à estrutura das bibliotecas, seja por meio de tecnologia, eventos culturais ou iniciativas comunitárias.
Todos esses dados apresentados na pesquisa mostram como o digital está impactando a forma como as pessoas consomem informações. O aumento do acesso a conteúdos digitais, a leitura em dispositivos móveis e o crescimento de plataformas como audiolivros e podcasts apontam para uma transformação no ato de ler. Isso levanta uma questão fundamental: como definimos o leitor contemporâneo? A reflexão da professora Maria Helena Martins, no livro da coleção Primeiros Passos, O que é Leitura (1990), oferece uma perspectiva valiosa. Ela sugere que a leitura deve ser entendida como um processo amplo de compreensão das expressões humanas, indo além do texto escrito. Esse olhar nos convida a ampliar nossa visão sobre o que significa ler e sobre as formas de expressão que o ato de ler abrange.
Portanto, a 6ª edição da Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil e as reflexões em torno dela nos mostram que a leitura não está confinada ao objeto livro, nem impresso, nem digital. Ler é uma interação com as diversas formas de expressão do ser humano, que vão desde textos até manifestações culturais e simbólicas. É um acontecimento, um processo que conecta o leitor ao mundo e a si mesmo. Além disso, os dados evidenciam como o digital está remodelando a relação com a leitura e o consumo de informações. Embora o livro ainda tenha um lugar especial, a multiplicidade de formatos, como o digital, audiolivros e textos em redes sociais, reflete uma mudança inevitável no perfil do leitor. Essas transformações exigem um olhar atento para entender como a tecnologia pode ser uma aliada na promoção da leitura em suas diversas formas, reconhecendo que o acesso às informações e ao conhecimento está se tornando cada vez mais fragmentado.
(*) Leonardo Assis é pesquisador do Laboratório de Cultura, Informação e Sociedade da Escola de Comunicações e Artes da USP.
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