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A favela [ainda não] venceu

Por Alecsandra Matias de Oliveira (*) | 28/11/2023 08:30

Quando Sueli Carneiro coloca em xeque que “a favela venceu” – posicionando-se contra à legenda famosa nas redes sociais –, ela está questionando o sucesso do sujeito isolado da coletividade. Nessa discussão, compreende-se o sentimento de pertencimento, mas igualmente permanece a lógica neoliberal e até mesmo meritocrática que pontua aquele indivíduo como superior aos demais – alguém que pode ostentar um bem de valor porque lutou e venceu. E caso outros não tenham, é justamente porque lhes faltaram empenho e dedicação.

Nesse exercício, o coletivo “favela” continua segregado – sendo o lugar daquele que não tem o direito à cidade; já o slogan se converte em tão somente autoprodução de narrativa vitoriosa e excludente. “Os que venceram”, muitas vezes, tomam como primeira medida sair do território periférico e aderir aos valores da elite. Nesse ponto, o lembrete de Mano Brown, em Negro Drama, é certeiro: “O dinheiro tira um homem da miséria. Mas não pode arrancar de dentro dele a favela”.

Notadamente, o termo favela tornou-se genérico, assim como suburbano ou periférico. Da origem dada às moradias populares surgidas em processos irregulares de ocupação do solo urbano, a favela tem como signos a autoconstrução e a resistência em múltiplos aspectos. No termo favela cabem mais do que as relações geográficas dos indivíduos com a cidade – e, especialmente, em contexto brasileiro, adquirem carga simbólica de marginalidade relacionada diretamente à posição social, somada à racialização e às discriminações.

A favela, o subúrbio e a periferia evocam formas de cidadania e de identidades complexas, marcadas por resiliência e marginalização. Esse modo de ser cidadão flutua entre duas narrativas opostas: o reforço de estereótipos negativos e a romantização da pobreza urbana. A frase “a favela venceu” parece ter sua interpretação pairando entre essas duas visões sobre os agrupamentos que estão às margens.

E, de fato, os discursos dos marginalizados (negros, indígenas e periféricos) têm surgido não apenas nas redes sociais, mas com mais frequência estão na programação de museus, galerias, feiras e bienais – espaços que até bem pouco tempo eram veladamente proibidos. Historicamente, lugares institucionais de arte, memória e história sempre estiveram ligados ao poder; legitimavam hierarquizações sociais e eram vistos como lugares de aprendizagem, porém, numa perspectiva de “guia da alta cultura”.

O que acontece quando a narrativa da favela ou, ainda, da periferia ocupa os museus? Talvez, o desconforto da frase “a favela venceu” se reflita nesta questão. O sonho da reparação e do reconhecimento ronda a organização desses discursos expositivos. Essa coletividade deseja ver suas memórias e suas histórias valorizadas e servindo como fonte de conhecimento e reconhecimento.

Nesse sentido, a inserção da cultura periférica faz parecer que o cubo branco se rendeu ao artista negro, indígena ou periférico – mera aparência, quando se percebe que os processos curatoriais “encaixam” essa produção artística no modelo de organização, conservação e exibição da história da arte brancocêntrica.

Quando isso acontece, a narrativa está lá, mas com uma potência controlada – algo “domado”, posto como “cota” e exemplo de uma suposta diversidade. Aqui vale a referência ao artigo “Acesso restrito”: processos curatoriais e a arte afro-indígena, publicado no Jornal da USP.

Para além dessa discussão, algumas vezes, os corpos negros, indígenas e periféricos figuram as obras de arte, mas ainda são consumidos pelo viés do exótico – semelhante às motivações dos artistas-viajantes do século 19 – a plateia elitizada aplaude a estetização do “outro” ou ainda da pobreza. Tudo isso são embates existentes na produção do conhecimento e na apropriação dos discursos narrativos que ganham evidência na cena contemporânea, valendo, sim, uma reflexão mais aprofundada.

Mas, o que acontece quando um museu de território, como o Museu da Cidade de São Paulo, resolve pensar a periferia no centro? Visto como espaço de mediação e de escuta sobre as demandas dos habitantes da cidade, o MCSP tem como função essencial discutir pertencimento e autorreconhecimento e, nesse intuito, sua programação de exposições tem se aproximado desses assentamentos periféricos e pensado novos modelos expositivos que tentam dar lugar à estética das periferias.

Neste ponto, joga-se luzes sobre a exposição Intersecções: negros (as) indígenas e periféricos (as) na cidade de São Paulo, com curadoria de Adriana Barbosa, Nabor Jr. e Eleilson Leite, em colaboração com Jera Guarani, aberta em 25 de janeiro e prevista até 20 de agosto deste ano.

Em três eixos, Territórios, Sujeitos e Imaginários, que se inter-relacionam de modo cronológico, a mostra traz fotografias, pinturas, vídeos, instrumentos musicais e figurinos produzidos por mais de 100 artistas que, por sua vez, lidam com diversas linguagens. O Solar da Marquesa de Santos e a Casa da Imagem – ambos na Rua Roberto Simonsen, no centro histórico de São Paulo, foram tomados pela produção periférica. Surge, então, um palimpsesto entre os edifícios históricos e os modos de construção registrados nas fotografias, vídeos e até mesmo no mobiliário expositivo.

Observe-se que a cada dia a degradação do centro histórico o tornou marginal como as periferias – em justa medida a sombra do perigo e da pobreza cerca os dois lugares.

A contaminação dos tempos, ou ainda, a dissonância entre a antiga ocupação elitizada e a construção do provisório é disruptiva: dá ao visitante a sensação de “algo fora do lugar” – o que, ao mesmo tempo, é parte da potência cultural da periferia (miscelânea de cores, materiais, imagens, sons e gente).

Lambe-lambes, tijolos baianos, mapas, grafites, moradias precárias, adensamento populacional… profusão de coisas que não cabem no ordenamento das tradicionais “exposições”. Nada descansa o olhar! Tudo vibra e extrapola fronteiras; circula. Como compreender a cultura paulistana sem o envolvimento do rap e do samba, por exemplo, que modulam entre centro-periferia?

A exposição permite entender o movimento de autoconstrução e de comunidade que se dá pelos quilombos urbanos (Aparelho Luiza, o Museu Afro Brasil e o Centro Cultural Quilombaque), pelas festas e eventos (a Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Penha de França, o Festiva BixaNagô, o Pagode da 27, o Black Mad, o Samba da Vela, os fluxos de Heliópolis e Paraisópolis) e, por fim, por manifestações diversas que, por sua vez, auxiliam no entendimento de conceitos tais como negritude, periférico e indígena.

Outro ponto fulcral da mostra: a memória oral indígena dentro de um museu – fator alheio à tradição dos povos originários. Porém, é inegável que a participação indígena na formação histórica de São Paulo é tão presente como sua ação na atualidade – assim sendo, a presença indígena no museu necessita de outras formas de acomodação.

Simultaneamente, se faz necessário romper com a ideia de que a existência dos povos indígenas está no passado colonial ou ainda na distante floresta amazônica. Parece incrível, mas isso ainda persiste no imaginário de muitos. Em São Paulo, os territórios indígenas mesmo apagados pela história oficial resistem na periferia – a memória está lá, mesmo quando negada ou não compreendida! A casa de reza, as aldeias, os hábitos, as histórias – e até mesmo uma cachoeira com água limpa na cidade são descobertas pelo público da mostra.

Cabe observar a intersecção racial entre negros e indígenas nas margens da cidade (mote da exposição) e, acima de tudo, a criação de uma identidade cultural chamada de favela ou periferia que envolve cultura vibrante, empreendedorismo criativo, resiliência inabalável e ativismo que reivindica o direito à cidade e à memória. Em disputa, o direito à cidade não é mais visto como acesso a bens e serviços (algo reduzido pela frase “a favela venceu”), mas sim, como direito de decidir sobre o rumo da cidade, de participar na produção e uso do espaço; de fazer escolhas; de deliberar, contestar e querer equidade.

Desse modo, entende-se que a “favela ainda não venceu”; o morador das periferias continua na posição de subalterno – fator relevante para a compreensão da segregação e das dinâmicas espaciais da cidade. Mas é preciso admitir que existe uma demanda por transformação.

O processo de concepção e exibição de mostras tradicionais não é mais suficiente para a leitura contemporânea dos ativismos e da arte que nasce desse processo. E nessa circunstância, uma coisa é certa: negros, indígenas e periféricos são capazes de produzir e, sobretudo, legitimar narrativas sobre seu território de origem e moradia – e eles estão fazendo isso. Sendo assim, é papel dos museus acolherem esses novos discursos.

(*) Alecsandra Matias de Oliveira é professora do Celacc (Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação) da Escola de Comunicações e Artes da USP.

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