A (in)segurança jurídica no Brasil: o que isso tem a ver conosco?
Imagine que você acaba de ser eleito Presidente da República e precisa começar a trabalhar. Quais seriam as suas prioridades?
Recentemente, circulou nas redes sociais a chocante cena de uma mulher, mãe e comerciante, sendo agredida violentamente por um agente da polícia militar de Santa Catarina, quando tentava proteger o seu marido em discussão sobre o fechamento do seu estabelecimento comercial. A filha do casal, uma estudante adolescente, precisou desesperadamente rogar ao policial que parasse de enforcar a sua mãe; quase foi agredida também. Pai e mãe foram presos e devem estar, junto com suas famílias, devastados emocional e psicologicamente, sem contar os inúmeros prejuízos financeiros que sofrem e que arruínam suas poupanças. Qual o futuro deles e, em especial, da filha adolescente?
Incontáveis pequenos e médios honestos comerciantes, no Brasil e no mundo, sofrem instabilidades há um ano com os tristes e graves efeitos da pandemia e agora rezam pela rápida vacinação; mas nada se pode comparar com a secular violência cotidianamente infligida aos comerciantes e aos trabalhadores brasileiros, por toda sorte de canalhas, nas grandes e médias cidades dessa nação.
Um país que não protege mulheres e homens honestos contra os desonestos não pode ser considerado um Estado de Direito, muito menos um Estado Democrático. Que sociedade livre é essa em que os cidadãos estão obrigados a conviver cotidianamente com descumprimentos de contratos, roubos, achaques, extorsões e agressões por parte de traficantes, milicianos, autoridades e vizinhos?
A violência no Brasil tem uma dimensão horrenda e abrangente, pois ela captura nossas vidas, corpos, psiques, saúde, educação, recursos financeiros, bens imóveis, bens móveis e contratos. Em síntese, podemos descrever que aqui se assassinam cerca de 60.000 pessoas por ano, se lesionam e estupram milhões de homens e mulheres; se tem um dos maiores índices de roubos e furtos do globo terrestre, desferidos contra cidadãos, empresas, fazendas, indígenas e transportes de carga; os contratos são frágeis, porque é quase impossível obrigar aquele que descumpre um contrato a cumpri-lo, salvo se esperarmos anos e anos em burocráticas e ineficientes ações judiciais; na fila do SUS se percebe o descaso com a saúde de nossos concidadãos; no banco das escolas o fracasso do sistema educacional brasileiro que além de não proteger as crianças contra a violência parental, de colegas e da sua comunidade, é capaz de manter sistematicamente 92% da população sem proficiência na língua pátria, com altíssimo índice de analfabetismo funcional.
Tendo, caro leitor, a imaginar que o dito acima é conhecido por todos. Nenhuma novidade, certo? Mas se assim o é, por que há décadas e décadas não conseguimos resolver e mudar de página?
Em minha visão, a resposta é: nunca houve verdadeira, sistemática, ampla e uniforme vontade política de se consolidar o Estado de Direito brasileiro, de modo a combater sem trégua os desonestos (assassinos, ladrões, traficantes, estupradores, milicianos, contrabandistas, invasores de terra e de reservas indígenas, corruptos e corruptores) que grassam, roubam e sangram diariamente a nação. Os políticos e governantes desperdiçam energia e atenção com discussões, leis, autarquias, empresas estatais, órgãos públicos, contratações de servidores, troca de favores, populismo eleitoreiro, corrupção. Debates inúteis e infrutíferos entre aqueles falsamente tidos como progressistas e conservadores, esquerda e direita.
De que adianta ao país gastar uma fortuna de impostos dos brasileiros para sustentar, no âmbito da União, Estados e Municípios, prédios suntuosos dos órgãos dos legislativos, judiciários e executivos, pagando salários altíssimos aos seus membros, entre cafezinhos e carros à disposição, se não é capaz de prover (i) polícia eficiente que atue preventiva e repressivamente contra tais violências; (ii) sistema qualificado de educação pública e (iii) bons serviços de saúde? Os recursos são finitos e têm que ser alocados em prioridades, pois cada centavo vale e muito.
Mas a culpa não pode ser colocada apenas no colo da fracassada política. É também da sociedade, que entorpecida aprendeu a viver nesse péssimo estado de coisas, aceitando as sujas regras do imundo jogo. Isso faz com que parte do empresariado e da sociedade brasileira jogue o game da corrupção, do pagamento de propina para obter favores, subsídios tributários, empréstimos no BNDES, cartelização, sonegação fiscal, emissão de nota-fiscal falsa ou sua subtração; assim como aceita se submeter aos achaques de autoridades municipais, estaduais e federais, a fim de fugir de uma fiscalização aqui, de outra autuação ali, de uma multa acolá.
Não se pode deixar de citar aqui os grandes positivos esforços e avanços da sociedade e muitas empresas ao se organizarem, implantarem sistemas de integridade, aprimorarem governança e apoiarem instituições educacionais, ambientais, de saúde e responsabilidade social.
Quando se analisam os países mais bem sucedidos do mundo, se verifica que há enorme correlação entre segurança jurídica e desenvolvimento humano. Quanto maior a segurança jurídica implantada em uma nação, maior é o seu índice de desenvolvimento humano. Canadá, Austrália e Alemanha são ótimos exemplos, pois neles é inconcebível permitir a prevalência dos desonestos sobre os honestos.
A acomodação do brasileiro a esse horroroso estado de coisas deve ser revertida. Para tanto é necessário um enorme esforço para mudar os hábitos nacionais. Se a grande maioria da população se sentisse segura para se locomover, escolher sua profissão e empreender, haveria uma silenciosa e rápida revolução, intenso desenvolvimento social e econômico, com pujante inovação e prosperidade para todos. Seriam essas as prioridades para um bom e eficiente presidente da República?
(*) Alexandre Aroeira Salles é doutor em Direito e sócio fundador do Aroeira Salles Advogados.