A instável estabilidade de Dilma Roussef
As duas crises de gabinete enfrentadas por Dilma Roussef nos seus primeiros seis meses de governo foram, em geral, vistas como acidentes de percurso, ou como o itinerário lógico no caminho de “deslulização” de seu governo.
Antonio Palocci, chefe da Casa Civil demitido, já sofrera o mesmo destino quando ministro da Fazenda do governo Lula, então devido a um affaire que misturou, berlusconianamente, propinas, esquemas corruptos, inside job, proxenetismo e putaria (isto é, um retrato fiel da insignificância pessoal do personagem).
Reconduzido ao governo Dilma como virtual primeiro ministro, Palocci caiu mais rapidamente do que na ocasião precedente, supostamente por não conseguir explicar o incremento de seu patrimônio pessoal em 20 vezes (2000%) nos últimos quatro anos – uma característica marcante do governo frente populista, ao ponto de uma enquete de Transparência Brasil ter revelado que a bancada parlamentar do PC do B, superando as outras, experimentou um crescimento de seu patrimônio de 1154% em igual período (patrimônio declarado, uma parcela do patrimônio real).
Gleise Hoffman, substituta de Palocci, elegeu-se parlamentar com “doações” capitalistas equivalentes ao dobro das recebidas por Lula para ser presidente...
Palocci era bem mais do que um ministro polivalente. William Rhodes, chefe da representação do capital financeiro internacional que renegociou a dívida externa brasileira na década de 1990 (renegociação que foi a base do Plano Real) declarou (Valor Econômico, 8/7) que, em 2002, Palocci intermediou a luz verde dada pelo grande capital mundial à eleição de Lula para a presidência, para o qual este teve que garantir a presença do ex-prefeito privatista (e corrupto) de Ribeirão Preto no seu governo.
Palocci foi, assim, o elo entre o grande capital financeiro e o PT, função à qual aspirou, com os resultados conhecidos, o demitido e cassado “rei do caixa 2”, José Dirceu. Marta Suplicy, presidente do Senado, encabeçou uma fracassada tentativa “petista” de salvar a cabeça de Palocci, episódio que evidenciou o recuo do PT diante da burocracia sem trajetória política partidária que fala em seu nome no governo federal (Fernando Haddad, acadêmico sem trajetória política nem intelectual, atual ministro de Educação, foi lançado por Lula como candidato à prefeitura de São Paulo, o terceiro orçamento do país, ao arrepio da base histórica do partido na cidade em que o PT nasceu).
A demissão de Alfredo Nascimento (6 de julho), ministro de Transportes envolvido em fraudes milionárias, revelou publicamente (graças a vazamentos oriundos do primeiro escalão do governo) que o PR (ex PL, partido do finado vice presidente Alencar) não passa de um empreendimento político de malfeitores, para dizê-lo de modo suave. Ora, o PL foi peça chave da estruturação da Frente Popular em 2002, como alternativa “crível” de governo, angariando o apoio do grande capital industrial e das igrejas evangélicas.
O enfraquecimento dos dois núcleos originais da Frente Popular eleitoralmente vitoriosa, o “operário” (PT) e o burguês (PL-PR) transforma o governo “técnico” de Dilma em um aparente vazio político, sendo esse um estado que não é tolerado na natureza nem na política.
A oposição “burguesa” só consegue marcar passo (para trás), chegando até contemplar uma fusão PSDB-DEM, que mais parece um ato de desespero [com seu chefe histórico, F.H. Cardoso, promovido a “embaixador de missões estratégicas” do governo Dilma!] diante da perspectiva de um afastamento sine die das tetas federais.
No governo, e no Estado, esse vazio tende a ser preenchido pelo PMDB. Quase 200 cargos em órgãos federais tiveram que ser cedidos por Dilma e suas “articuladoras” (Gleise Hoffman e Ideli Salvati) à “base aliada” para manter seu apoio parlamentar (e evitar uma investigação sobre os escândalos de Palocci e Nascimento).
Com 79 deputados federais, 19 senadores, cinco governos estaduais e seis ministérios, o PMDB lançou uma ofensiva sobre cargos federais de segundo e terceiro escalão de todo tipo. Como a maioria dos indicados por Lula se mantém (o ex metalúrgico está de olho...) a “base” de Dilma não cresce, ao contrário: o governo petista “deslulizado” é uma miragem.
A FIESP e seus porta-vozes reclamam a queda da taxa de juros, a desvalorização monetária, e denunciam a “desindustrialização do país”. Esta tendência não é conjuntural, mas reflete o recuo histórico do Brasil, parcialmente oculto pelas miragens em torno dos programas sociais e da “redistribuição de renda”, assim como de sua condição internacional de “emergente” (“submergente” seria um neologismo mais apropriado).
Em informe recente, a Fundação Getúlio Vargas pintou o Brasil como paraíso da mobilidade e da justiça social, com uma maré de bem-estar entre 2003 e 2011 que conduziu para a «classe média» (C) a 39,5 milhões de brasileiros, antes pertencentes às classes “D e E”, com uma renda mensal entre US$s 800 e US$ 3.400. Teria se reduzido em 54,18% a base da pirâmide (classes D e E), com uma queda da pobreza de 15,9%. Os principais fatores teriam sido os programas de “transferência de renda” (Bolsa Família) e a queda da taxa de nascimentos.
A renda dos mais pobres cresceu 6,3%, a dos mais ricos só 1,7%: diversamente da China, o “crescimento brasileiro” seria paralelo a uma redistribuição da renda nacional, que caracterizaria um “crescimento com inclusão social”, fazendo do brasileiro “povo mais otimista do planeta”.
As cifras que expressam isso são postas em dólares. Ora, pela sua transformação em plataforma de valorização fictícia do capital financeiro, iniciada sob o “neoliberalismo”, acentuada com Lula, a moeda brasileira sofreu uma valorização superior a 147% (no mesmo período, 1994-2011, o dólar desvalorizou-se em quase 35%).
Ou seja, houve um “reajuste” em dólar de todas as rendas equivalente a 182% (147+35), em dólar, graças à valorização monetária, que se reflete em toda a estrutura de preços, da gasolina até as passagens de ônibus, que fizeram do Brasil um dos países mais caros do mundo.
Com essa manipulação de valores monetários, o percentual de pobres no Brasil passou de 36% em 2003 para 27% em 2007. O reajuste do salário-mínimo foi de 58,4% em oito anos de governo de Lula, bem distante da promessa de dobrar o salário mínimo ainda no seu primeiro governo (a participação dos salários na renda nacional total manteve-se inalterada).
As medidas adotadas pelo governo petista para evitar a valorização do real (intervenções sistemáticas no mercado cambial; taxas, primeiro de 2%, agora de 6%, sobre os investimentos externos na Bolsa de Valores e nos títulos públicos, não impediram a chuva de dólares atraídos por taxas de juros sem comparação com o restante do mundo, com uma taxa básica de quase 13%, e taxas bancárias dez vezes superiores.
O pagamento dos juros da dívida pública (quase R$ 700 bilhões em 2010) compromete metade do orçamento federal. As remessas de lucros ao exterior, de US$ 99 bilhões nos oitos anos precedentes a FHC, superaram US$ 194 bilhões nos oito anos sob FHC (oito anos), e atingiram US$ 343,5 bilhões no governo Lula (oito anos).
O real se valorizou 40% em termos reais desde 2006; no mesmo período as importações brasileiras quase dobraram, enquanto as exportações cresceram apenas 5%: "A única razão pela qual o déficit em conta corrente brasileiro não explodiu são os altos preços das commodities. Mas esse boom pode não durar para sempre", alertou o Financial Times. “A bicicleta econômica se depara com a trincheira da guerra cambial", ou seja, com a realidade da crise mundial.
A “bolha”, que é sua manifestação fenomênica, já está presente: “os consumidores brasileiros agora parecem estar sobrecarregados, gastando mais que um quarto de suas rendas para o pagamento de empréstimos - nível superior ao verificado nos Estados Unidos no período anterior à crise de 2008”, advertiu o jornal da “comunidade mundial dos negócios”.
O Bolsa Família é bancado com percentuais mínimos das cifras citadas acima. Traduz, também, a incapacidade do Estado brasileiro para combater a pobreza incorporando às massas pobres a um processo de transformação industrial e desenvolvimento econômico.
No quadro histórico-mundial, as forças produtivas do país experimentaram um retrocesso histórico: a indústria reduziu em 17% sua participação no PIB, entre 1985 e 2008 (caiu de 33% para 16%). Entre 2004 e 2010, o percentual da indústria na pauta exportadora caiu de 19,4% para 15,8%: a relação manufaturas/exportações totais, que atingiu 60% na década de 1980, hoje se situa em 40% (ver entrevista com Wilson Cano, da Unicamp, Folha de S. Paulo, 12/6).
O superávit comercial de US$ 24 bilhões na área de produtos industriais, em 2004 (inicio do governo do PT) se transformou, em 2010, em um déficit de US$ 36 bilhões. Cerca de 60% das empresas brasileiras estão, por outro lado, nas mãos de estrangeiros. O conjunto das exportações ainda correspondeu a apenas 12% do PIB em 2008, enquanto a média internacional é de 30%.
O superbadalado PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) consumiu ingentes recursos públicos para incrementar em menos de 0,5% do PIB (de 2,05% para 2,53%) os investimentos em infraestrutura, sem falar nas “renúncias fiscais” para beneficiar os investimentos, equivalentes a R$ 144 bilhões (ou seja, uma transferência do Estado para o capital de valor superior aos gastos conjuntos com saúde e educação).
Depois de oito anos, o Bolsa Família deixou ainda 16,2 milhões de pessoas em situação de miséria absoluta (renda mensal inferior a 40 dólares, menos de uma passagem de ônibus por dia), más de 50% no Nordeste, região com 28% da população, mas responsável apenas por 14% do PIB, em que pese ter sido a região que mais “cresceu” nos últimos anos.
O governo Dilma viu-se obrigado a lançar um novo programa social (“Brasil sem Miséria”) dirigido especificamente a esse setor. Para Marcial Portela, presidente do Banco Santander no Brasil: “Em poucos anos, o Brasil terá menos pobres que os EUA”, o que é provável, menos pelo “avanço” brasileiro do que pelo retrocesso norte-americano. O “Brasil sem Miséria” está orçado em R$ 1,2 bilhões.
A título de comparação, a participação (inicial) do governo no projeto de “trem bala” (privado, e dirigido às classes abastadas, ao ponto de só prever paradas nos quatro aeroportos entre Campinas e Rio de Janeiro) é de R$ 3,9 bilhões, sem falar nos R$ 23 bilhões que seriam emprestados pelo BNDES aos ousados “empreendedores” brasileiros.
A comparação com os gastos da rolagem da dívida pública (equivalente a R$ 2,5 trilhões, para um PIB de R$ 3,7 trilhões: em 2011, a dívida externa brasileira atingiu a marca de US$ 357 bilhões, e a dívida interna R$ 2,24 trilhões) seria ridícula: o governo gasta diariamente nessa rolagem dos grandes credores quase o dobro do previsto anualmente para os mais pobres.
A “concentração de renda” pouco variou no Brasil, e continua sendo uma das mais retrógradas do planeta. A melhora em alguns índices de pobreza foi um subproduto de um crescimento especulativo, usado para manipular eleitoralmente um vasto setor das massas exploradas, que dificilmente resistiria o impacto da crise mundial sobre a economia semi-colonial do gigante de pés de barro.
Nos oito anos de governo encabeçado por Lula, a maioria das direções sindicais e do campesinato foi integrada ao Estado. A desmobilização dos trabalhadores, com escassas exceções (o movimento dos servidores públicos contra a reforma previdenciária em 2003 e algumas mobilizações setoriais campesinas) foi a tônica dominante nesses anos.
Desde 2009, frente à crise e as demissões, houve uma recuperação das lutas da classe trabalhadora, inclusive em setores estratégicos, todavia longe de uma ofensiva de classe. Grandes setores de assalariados, como metalúrgicos, bancários, petroleiros (estes, pela primeira vez em greve em 14 anos, em 17 plantas e refinarias, depois da derrota de 1995), operários da construção, Correios, cruzaram os braços e ganharam as ruas em defesa de seus salários e reivindicações.
Com o governo Dilma, a crise mundial passou a atingir mais diretamente os trabalhadores: corte de mais de R$ 50 bilhões do orçamento federal, atingindo principalmente as áreas sociais (quase nove bilhões da área de infraestrutura, três bilhões da educação, 1 bilhão da reforma agrária e quase 1 bilhão da saúde); suspensão dos editais de concursos; cancelamento das nomeações; congelamento de salários dos SPFs (PLP 549/09); aplicação da avaliação de desempenho para demitir (PLP 248/98); PL 1992/07 que visa regulamentar a aposentadoria complementar para os servidores públicos. Esse cenário vem contribuindo para o desenvolvimento de importantes lutas e greves salariais em vários setores, em especial nos servidores públicos, em todo o país.
Os movimentos de luta tiveram seu ponto alto, nestes seis meses, na greve de 100 mil operários da construção operária e civil das obras do PAC, em especial em Jirau (Rondônia). Mas as greves se desenvolveram isoladamente, sem centralização. Os SPFs, submetidos a violento arrocho salarial (a participação percentual salarial na receita líquida da União diminuiu 23% nos últimos dois anos), em campanha salarial nacional, já realizaram três manifestações nacionais.
Os professores da educação básica, com salários baixíssimos e defasados, entraram em greve em 17 estados (com especial massividade e combatividade em Rio de Janeiro e Santa Catarina) – dessas greves, só quatro se mantém em pé. Outra luta nacional é a dos funcionários das universidades públicas federais, que envolveu 47 estabelecimentos em todo o país.
Outros movimentos têm ocorrido em diversos estados: paralisações na Refinaria Abreu e Lima, Petroquímica Suape, Estaleiro Atlântico Sul, Hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, atos contra aumentos de tarifa de transporte coletivo, greves em diversos setores. A jornada nacional de luta de 28 de abril, no entanto, teve repercussão escassa nos estados.
Já a manifestação nacional em Brasília, a 16 de junho, realizada por iniciativa da CSP-Conlutas, teve milhares de participantes e bastante impacto político.
A CUT e outras centrais sindicais (beneficiadas, desde outubro de 2008, por uma receita suplementar de R$ 250 milhões, devida à extensão do importo sindical aos funcionários públicos, decretada pelo governo Lula) boicotaram, desorganizaram ou isolaram as lutas, como a da Volkswagen no Paraná, ou a dos bombeiros de Rio de Janeiro, que teve grande apoio popular, por condições de trabalho e melhores salários – os atuais são miseráveis – e que foram detidos por insubordinação.
A repressão à Marcha da Liberdade em São Paulo exprimiu-se por meio de um mandato judicial que proibia a realização do ato. Este ocorreu apesar da proibição, resultando em ferimentos e prisão de manifestantes. Ativistas contra a visita do presidente Obama foram tratados como criminosos.
Os assassinatos agrários (Pará!) são o complemento da investida brutal do capitalismo no campo, controlado pelas multinacionais capitalistas – Monsanto, Novartis, Pioneer e Agrevo – tanto na produção, quanto na transformação e distribuição, e que se expressa em crescimento tecnológico, mecanização, concentração de terras e exploração do trabalhador. Hoje, das 500 maiores empresas incluídas no ranking de vendas, 144 tem negócios que dependem da atividade agropecuária.
A modificação do Código Florestal, com a anistia aos desmatadores, amparados por um acordo do governo com políticos ruralistas, fortaleceu os interesses do agronegócio. O Código Florestal aprovou a ampliação das áreas passíveis de desmatamento, incluindo margens de rio e topos de morro, representando um grave retrocesso.
A sequência de assassinatos de líderes camponeses, incluindo José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva, Adelino Ramos e Marcos Gomes da Silva, aponta para o extermínio das lideranças camponesas em razão dos interesses do agronegócio capitalista, sob o manto da impunidade governamental. 35 parlamentares petistas votaram contra o Código.
No quadro da emergência e multiplicação das lutas se constituiu o “Espaço de Unidade de Ação”, reunindo os setores que fracassaram na unificação sindical classista tentada no Conclat de Santos (junho de 2010), basicamente a CSP-Conlutas e a Intersindical, assim como diversos sindicatos ou federações nacionais (CNESF, CONDSEF, FENASPS, ANDES-SN, ANEL, SINASEFE) e sindicatos estaduais.
Junto com o MST e o MTST, este agrupamento convocou a uma Jornada de Lutas (17 a 26 de agosto) com uma manifestação nacional a 24 de agosto, em Brasília. O programa contempla um conjunto de reivindicações sindicais, nacionais e democráticas, de variado valor mobilizador.
Esse “Espaço” poderia ser um passo em direção da independência sindical e política dos trabalhadores, da reconstituição de um movimento operário independente, se não se limitar a acordos de cúpula e a jornadas nacionais de luta, sem continuidade, isto é, se for baseado em plenárias estaduais e regionais de base, para elaborar um programa e um plano de lutas nacional do movimento operário e camponês, da juventude e da população pobre das cidades. O Brasil começa a entrar na onda “indignada”.
(*) Osvaldo Coggiola é professor titular de História na USP.