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A primeira Escola Indígena de Campo Grande: um sonho possível

Por Kleber Gomes (*) | 26/10/2023 10:00

Parte da minha infância foi vivenciada aos pés do meu bisavô Francisco Gomes, na Aldeia Ipegue, município de Aquidauana, terra dos meus ancestrais do povo terena. Lá fui ensinado que o sonho da noite anterior muito tem a ver com o que idealizamos, com o que vivenciamos no presente, com as lutas do dia a dia e com os anseios quanto a futuro. Com o meu "Papai Véio", como carinhosamente chamávamos o nosso Vovô Chico, aprendi que devemos nos agarrar firmemente ao sonho mais recente que tivemos e lutar muito para que aquilo que estiver ligado ao que sonhamos se torne realidade.

No tocante ao presente e direcionando-me a uma temática bem atual junto aos/às meus/minhas parentes que vivem atualmente no contexto urbano de Campo Grande, temos um sonho coletivo, o de termos a primeira Escola Indígena concretizada em solo campo-grandense.

Além desse sonho em conjunto com os/as demais indígenas campo-grandenses, tenho sonhado várias vezes, nas últimas semanas, madrugadas adentro, com uma escola na qual as crianças dos nossos povos originários na capital do Mato Grosso do Sul sejam atendidas de acordo com aquilo é a sua alma e o íntimo de seu ser, indígenas com uma história, uma cultura, costumes, identidades, idiomas e credos a serem respeitados, reconhecidos e conhecidos pela população não indígena.

Em uma primeira conversa, ainda que informal, com os líderes e as líderes das aproximadamente 20 comunidades indígenas que temos por aqui na atualidade, concordamos com a urgência da concretização da Primeira Escola Indígena no município de Campo Grande/MS. Sabemos ser o caminho longo até a consolidação desse sonho, mas esse desejo inicial de nossa parte e as demandas que existem no sentido de que seja criada a Escola Indígena na capital sul-mato-grossense fazem-nos partir imediatamente para ações pontuais nesse sentido.

Passei a visitar as comunidades indígenas hoje existentes em Campo Grande, no objetivo de colher assinaturas do maior número possível de lideranças, para, ao final, materializar um documento reivindicador da criação da primeira Escola Indígena na capital sul-mato-grossense. De início, a recepção tem sido excelente por parte desses/as líderes, os/as quais compactuam no entendimento de que o Poder Público Municipal imprima celeridade nos esforços para que esse pedido seja atendido em breve.

O movimento indígena tem um papel ímpar na implementação da educação escolar indígena, afinal, é ele quem tem o papel de dar os primeiros passos na organização de escolas administradas com base nos anseios de nossas comunidades e nas especificidades e necessidades dos povos originários. Por essa razão, temos buscado apoio junto a essas lideranças.

O último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2022) apontou a existência de 18.439 indígenas no município de Campo Grande. Esse número é bem expressivo e reforça a realidade de que as comunidades indígenas hoje existentes na capital sul-mato-grossense merecem uma atenção especial do Poder Público Municipal. Essa atenção, entendemos, deve ser relacionada à criação e a execução de políticas públicas voltadas a nossos povos presentes na atualidade por aqui.

Com relação ao destacado logo acima, o Poder Público Municipal precisa olhar com foco redobrado as comunidades indígenas que residem em Campo Grande, no sentido da criação e implementação de políticas públicas que atendam os anseios e as necessidades dos povos originários que por aqui se estabeleceram na recente história de urbanização pela qual passou a capital do Mato Grosso do Sul.

De forma mais específica, e ao mesmo tempo sem desmerecer as demais áreas, tais como a saúde, a segurança e a geração de renda, precisamos de um atendimento mais criterioso com relação à educação e, nesse ponto, a criação da primeira Escola Indígena campo-grandense em muito atenderia nossas demandas e anseios do momento.

Termos em Campo Grande uma Escola Indígena seria, de fato, não mais um instrumento de dominação e sim um meio estratégico e real de reafirmação étnica e cultural. Segue-se assim um plano legal no atendimento das necessidades educacionais dos povos indígenas no contexto urbano campo-grandense, com as garantias plenas de respeito aos nossos modos de vivências em comunidade e às nossas organizações.

O sonho que temos em conjunto tem como uma de suas bases a educação indígena, no caso a aprendizagem espontânea, pela qual crianças, adolescentes e jovens, na observação a outras pessoas, passam a praticar as suas atividades diárias nas aldeias e comunidades. Dessa forma, esses/as alunos/as da vida, do dia a dia, do cotidiano, aprendem suas tradições e costumes sociais sem subordinação às grandes e complexas explicações das escolas formais das sociedades não indígenas. Tudo que dessa forma é transmitido configura-se educação indígena. Todos e todas são alunos/as e, ao mesmo tempo, professores/as, isso porquê, nesse caso, o ensino e a aprendizagem são mútuos e vivenciados com extrema naturalidade.

Crianças, adolescentes e jovens indígenas se preparam para serem sujeitos plenos e produtivos no seio de sua comunidade, junto aos seus povos de origem, aos demais povos originários e, em um sentido mais amplo, nas interações com as sociedades não indígenas. A "cereja do bolo" chega com a educação escolar indígena, a educação transmitida, em termos oficiais, por meio do ambiente escolar. No sonho em questão, destacado desde o início do texto, em se tratando de Campo Grande, a Escola Indígena terá esses dois elementos em conjunto e se completando mutuamente e ao mesmo tempo em seu âmago: a educação indígena e a educação escolar indígena.

Na experiência atual de Campo Grande, nas redes de ensino, tanto municipal local como na estadual, temos inúmeros professores e professoras indígenas que poderão nos ajudar na composição do quadro docente que se faz necessário atuar quando houver vida dessa Escola Indígena tão urgente e tão almejada. Uma outra realidade que deva impulsionar o Poder Público para uma ação rápida nesse aspecto é a de que não são poucos os pais, as mães e os/as responsáveis nas comunidades indígenas de Campo Grande que, diariamente, necessitam ir à labuta todas as manhãs e, consequentemente, têm a necessidade de um local no qual possam deixar seus filhos e filhas durante as horas em que estarão fora de seus lares na busca pelo seu sustento.

A tão objetivada Escola Indígena em solo campo-grandense deve ser o espaço para o qual sejam, continuamente, convidados os/as anciãos/ãs das comunidades indígenas de Campo Grande. Os/as alunos/as ouvirão a respeito de experiências de ancestralidade e também serão chamados, por meio dessa ação específica, a cooperarem no fortalecimento das culturas dos povos originários. Experiências de anos e anos selam a veracidade de que os anciãos e anciãs são parte importante no processo da escolarização indígena.

Sem sombra de dúvidas, os/as mesmos/as são bibliotecas vivas e, assim, necessitamos colocá-los/as em contato direto com os/as mais jovens para que todo o conjunto de sabedoria, lições e maturidade sejam conhecidos pelos/as mais novos/as. Nesse aspecto, a Escola Indígena é local imprescindível para essas ações áureas e o repasse de todo esse rico e vasto material.

A criação da Escola Indígena é urgente em Campo Grande, pois será o estabelecimento de ensino no qual sejam ensinadas as línguas maternas originárias, contribuindo-se assim para o fortalecimento desses idiomas junto às novas gerações, sendo evitados o desaparecimento e a extinção como, infelizmente, ocorreu com algumas línguas faladas no passado por povos indígenas que aqui já se encontravam estabelecidos, nas terras que hoje compõem o atual território do estado do Mato Grosso do Sul. A revitalização, a manutenção, o ensino e o aprendizado das línguas indígenas passam pela existência da Escola Indígena.

Em tempos atuais, nos quais se multiplicam os discursos e as ações em prol do respeito às diversidades e, de forma muito destacada, nos âmbitos educacionais e escolares, faz-se necessário combater todas as ideias que, porventura, ainda existam a respeito de um ensino homogêneo, pelo qual exista apenas uma forma de ser escola. Esse pensamento esteve muito presente pelo país em momentos bem recentes, pelo qual os indígenas eram uma espécie de entrave para o progresso, o desenvolvimento e a ordem do país.

Assim, aqueles que advogavam esse ideal insistiam que os povos originários, em sua totalidade, deveriam passar por um processo civilizatório, seguindo-se uma cartilha daquilo que era certo, para assim, e somente assim, tornarem-se melhores em sua existência.

Por vários motivos aqui estamos, na quase metade do século 21, inseridos no contexto urbano da capital de Mato Grosso do Sul. Se cada um de nós, ou mesmo nossos pais e avós, fossem inquiridos dos porquês que nos trouxeram a Campo Grande, várias seriam as respostas. Independente dos motivos do passado que nos trouxeram aqui ao ambiente da cidade, cá estamos bem vivos e lutando pela continuidade de nossa existência, com extremas resistência e bravura e, nesse sentido, de forma bem audível, reivindicamos uma Escola Indígena, com nossa cara, com nossa alma e com nosso jeito.

Campo Grande terá retornos de excelência nos investimentos que o Poder Público Municipal for realizar na implantação da primeira Escola Indígena na capital sul-mato-grossense. Esses ganhos para o município virão pelo fortalecimento das culturas dos povos originários presentes na atualidade por aqui e pela atuação de indígenas mais e mais conscientes de seu papel na continuidade da escrita da história desta cidade, como há décadas já temos realizado, sendo parte ativa da formação social e política desta terra.

Como um dia, lá no passado, Vovô Chico disse: "Sonhou, filho? Vá adiante, lute, agarre-se àquilo que viu claramente no sonho". Essa viva lembrança me faz prosseguir e lutar junto a mais parentes que também, hoje, sonham alto com isso. Iremos em frente. Cremos, a Escola Indígena em Campo Grande é um sonho possível de ser concretizado.

(*) Kleber Gomes é Indígena terena, professor de Educação Infantil e Anos Iniciais na Rede Municipal de Ensino (REME) de Campo Grande/MS, mestrando em Ensino de História pelo PROFHISTÓRIA da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS).

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