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A restauração do poder discricionário pela reforma da Lei de Improbidade

Por André Borges e Julicezar Barbosa (*) | 08/09/2022 13:30

A Lei de Improbidade Administrativa (LIA) entrou em vigor em 3/6/1992, prevendo sanções para condutas ímprobas na gestão da coisa pública. Permaneceu com poucas alterações até outubro de 2021, quando foi substancialmente alterada pela Lei nº 14.230.

Espera-se que, entre outros efeitos, a reforma recupere a discricionariedade do administrador. Administrar é governar, dirigir, gerir. Gestores públicos são incumbidos de administrar o Estado. Por mais que a lei restrinja e vincule boa parte dessa função, quase sempre há margem para escolhas: é o poder discricionário do administrador público.

A preservação dessa janela decisória é de grande importância, porque a lei não pode prever todas as situações concretas que o agente público encontrará. São suas escolhas que diferenciam o bom do mau gestor. Por vezes o administrador erra na escolha. Mas nem todo erro enseja punição. São a gravidade e a voluntariedade do erro que vão definir se o gestor será punido, e em qual esfera.

Numa ponta, o erro pode configurar crime, submetido ao Direito Penal. Noutro extremo, pode nem mesmo ensejar imediata punição (o que não significa que o administrador não será de alguma forma julgado, podendo, por exemplo, ser preterido num futuro concurso de promoção, ou não ser eleito na próxima eleição).

Havia, porém, uma lacuna entre o fato criminoso e o impunível: falhas que não eram nem tão graves para serem submetidas ao Direito Penal, nem tão irrelevantes para serem ignoradas. Exatamente nessa lacuna (e em atendimento ao art. 37, § 4º, da Constituição), veio a LIA para punir os chamados atos de improbidade administrativa: ilegais, lesivos e desonestos.

Em quase duas décadas de vigência praticamente inalterada, a LIA muito contribuiu para o combate à corrupção no Brasil, restituindo quantias desviadas dos cofres públicos, punindo desonestos e tornando inelegíveis políticos ímprobos. Isso sem falar no efeito preventivo: incontáveis atos de improbidade deixaram de ser praticados pelo receio da punição.

Apesar de seus inegáveis avanços, a LIA não era perfeita. Talvez por ter sido editada na primeira infância constitucional, era muito ampla e recheada de conceitos jurídicos indeterminados. Podiam ser caracterizados como ímprobos (e potencialmente punidos) quaisquer atos dos quais discordasse o Ministério Público (ou qualquer titular de entidade pública). E mais: não era sequer necessário que o gestor quisesse praticar a improbidade, bastando a imprudência, a negligência ou a imperícia para que fosse configurado o ato ímprobo culposo.

Enfim: o gestor podia ser punido por errar mesmo tentando acertar. Esse controle excessivo das opções do administrador teve como efeito negativo a responsabilização da discricionariedade administrativa. O medo de punição das simples escolhas, ainda que lícitas e bem-intencionadas na origem, restringiu consideravelmente a margem decisória. Como resultado, muito se deixou de inovar, de arrojar e de ousar. Essas e outras indesejadas consequências motivaram a oportuna reforma de 2021.

Destaca-se, entre as acertadas alterações trazidas pela Lei 14.230, a extinção do ato de improbidade culposo. Só são ímprobas, agora, as condutas dolosas, ou seja, praticadas com “vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito”, “não bastando a voluntariedade do agente”. A reforma ainda esclarece: “o mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa”.

Atualmente, portanto, o simples erro não é mais ímprobo. Não se pune por apenas errar, mas sim por querer errar. Finalmente se respeita o entendimento de que a LIA “não objetiva punir o administrador inábil, mas sim o desonesto, o corrupto, desprovido de lealdade e boa-fé”, nas palavras do Des. Dorival Renato Pavan.

O STF recentemente vetou a aplicação dessa alteração para fatos já julgados definitivamente, mas a manteve para fatos e julgamentos futuros. Assim, torcemos para que a reforma da LIA restaure o poder discricionário do administrador. Que os gestores possam voltar a fazer, sem medo, escolhas legítimas e bem-intencionadas. Que o trato da coisa pública retome a inovação, o arrojo e a ousadia. Que se puna quem se deve punir: aquele que propositalmente erra. Mas que se proteja aquele que erra tentando acertar.

(*) André Borges e Julicezar Barbosa são advogados

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