A trama da transição energética e um dos seus protagonistas, o lítio
Muito se tem discutido nas últimas décadas acerca da transição energética, das questões ambientais e climáticas. Durante muito tempo também se falou sobre o pico do petróleo e sua escassez, porém recordemos que o petróleo substituiu o carvão não pelo esgotamento deste, mas sim por sua eficácia em um modo de produção regido pela alta produtividade. Como afirmou Daniel Yergin, no livro O petróleo: uma história de ganância, dinheiro e poder, desde que foi encontrado, o óleo negro ganhou o poder de construir ou destruir nações, sendo decisivo nas grandes batalhas políticas e econômicas do século XX. Embora tenhamos assistido a uma turbulência em relação a sua oferta, demanda e seus preços, que chegaram a ser negativos em meados de 2020, a máquina de segurança, defesa e de guerra dos países ainda é profundamente dependente do petróleo.
Tal como o petróleo é um combustível político, sua substituição também é. No início dos anos 2000 o engenheiro e físico Bautista Vidal afirmou que os impactos do uso intensivo dos combustíveis fósseis já eram conhecidos desde a década de 1970, quando o primeiro informe do Clube de Roma constatou a exaustão dos recursos naturais. Desde então, ocorreram ajustes no uso dos combustíveis fósseis e uma busca por alternativas que fossem economicamente viáveis, tais como a energia nuclear ou os biocombustíveis, particularizados na iniciativa do ProÁlcool (Programa Nacional de Álcool), que evidenciou as potencialidades brasileiras. Hoje, o cenário emergente do ativismo verde de baixo carbono parece mover-se muito mais no sentido corporativo da transição energética do que no sentido de mudança da matriz do sistema. Isto porque o planejamento estratégico das grandes potências, que estão no epicentro geopolítico deste debate, não demonstra uma preocupação imediata com a exaustão dos combustíveis fósseis, mas sim com os custos para garantir o acesso às reservas. Na ótica das transições energéticas que ocorrem em escala global e nacional, as empresas petrolíferas têm indicado uma diminuição de investimentos em fase de exploração e produção.
Neste sentido, a era do petróleo poderá chegar ao fim, menos por resultados do ativismo ambiental e avanços tecnológicos e muitos mais por consequências da geopolítica, da financeirização, bem como da instabilidade dos preços do petróleo e o acesso às reservas. Como um alerta para a periferia do sistema, altamente dependente das rendas petrolíferas, José Martins indicou que as grandes oscilações dos preços também ocorriam devido a modificações estruturais na matriz energética produtiva. Portanto, a mudança da matriz energética será provavelmente manifestada por dois aspectos: o primeiro deles, como já foi mencionado, é a diminuição da oferta de petróleo, que resulta da crescente pressão dos fundos de investimentos petrolíferos por mais rendimentos e menos investimentos de risco desbravando fronteiras e descobertas; o segundo aspecto está na capacidade das grandes operadoras de petróleo de se tornarem protagonistas na produção de outras formas de energia.
Com a migração dos investimentos e a pressão financeira, as petrolíferas estão a se pintar de verde e a ação climática está no topo das agendas dos grandes executivos. Há uma corrida global por energia renovável e verde, onde as indústrias de petróleo e gás têm estabelecido fortemente sua presença, diversificando seus investimentos e sua produção energética por meio da produção fotovoltaica, biomassa, hidrogênio, energia eólica e através do controle das matérias-primas consideradas críticas para a transição da matriz energética. A Consultora KPMG realizou uma pesquisa survey com os CEOs do Setor de Energia e identificou a alteração climática e ambiental como o principal risco para o crescimento das suas organizações nos próximos anos. Assim sendo, os determinantes para a transição da matriz energética podem ser definidos como políticos e econômicos, a segurança energética com ganhos a longo prazo e ganhos financeiros e acionários a curto prazo.
Em relação às matérias-primas que arrimam a transição e a adaptação à econômica verde, o lítio tem um papel de destaque. Isto porque as baterias de lítio possuem aplicações estratégicas no combate às intermitências das energias renováveis, permitindo armazenar energia em momentos de excesso. Também está presente no uso cotidiano por meio dos celulares, laptops e em sistemas de transporte baseados em veículos elétricos.
O protagonismo do lítio e os impactos socioambientais
O lítio, um metal singular de coloração prata esbranquiçada encontrado nas rochas magmáticas, ocupa o terceiro lugar na tabela periódica e está presente no planeta há 13,8 bilhões de anos, em uma história que se confunde com a nossa, cem segundos após a explosão do Big Bang se formou o lítio (Li). Está presente em depósitos minerais, em salmouras com alto teor de lítio, em nosso sangue e em todo o Cosmos, e embora seja encontrado ao redor do mundo, nem todo depósito mineral ou salmoura são comercialmente viáveis, muitos são pequenos ou não possuem alta concentração de lítio.
Atualmente, as principais fontes do lítio são os evaporitos (salmouras concentradas), localizadas majoritariamente na América Latina – Argentina, Bolívia e Chile. Também a China e os Estados Unidos possuem reservas em salmoura, o Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS – sigla em inglês) indicou que cinco operações na Austrália e duas operações em salmoura na Argentina, no Chile, duas operações na China foram responsáveis pela maior parte de produção mundial de lítio. Já as fontes de lítio à base de minerais em diferentes estágios de desenvolvimento se encontram na Austrália, Áustria, Brasil, Canadá, China, Congo (Kinshasa), República Tcheca, Finlândia, Alemanha, Mali, Namíbia, Peru, Portugal, Sérvia, Espanha e Zimbábue.
Em rochas, o espodumênio e os demais minerais de lítio ocorrem, geralmente, como um mineral acessório nos pegmatitos. Embora o lítio ocorra em diferentes minerais, somente o espodumênio, a lepidolita, a petalita, a ambligonita e a montebrasita são utilizados como fontes comerciais de lítio. Atualmente, as principais fontes de lítio exploradas em rochas, comercialmente, são o espodumênio e a petalita. Neste caso, os minérios são lavrados a céu aberto ou por meio de lavra subterrânea; já em salmouras a técnica de extração do lítio é evaporar a água e o cloreto de lítio é convertido em sal de carbonato ou hidróxido.
O lítio produzido mundialmente é consumido em maior parte pelos fabricantes de bateria, pelas indústrias da cerâmica, na fabricação de graxas e lubrificantes e produtores de polímeros. Junto com outros minerais, o lítio é parte dos “minerais críticos para a transição energética”, segundo o relatório da Agência Internacional de Energia (IEA – sigla em inglês), na medida em que a transição energética ganha força face às metas de Paris e aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, teremos um aumento da demanda de minérios em mais de 40% para cobres e elementos em terras raras, 60% e 70% para níquel e cobalto e quase 90% em relação ao lítio.
O relatório destaca ainda que para alcançar os objetivos do Acordo de Paris, ou seja, estabilização do clima abaixo dos “2ºC de aumento da temperatura global”, as necessidades minerais quadruplicarão até 2040. Um processo ainda mais célere de transição, atingindo o chamado “net-zero” até 2050, exigiria seis vezes mais disponibilidade de minerais que os extraídos atualmente.
Ainda segundo a Agência Internacional de Energia, a procura de minerais para utilização em veículos elétricos e baterias deve crescer no mínimo 30 vezes até 2040 e o horizonte da produção de energia com baixo teor de carbono poderá ser assumido pela energia dos ventos, seguida pela fotovoltaica, enquanto a energia hidrelétrica, a biomassa e a nuclear dão pequenos contributos, dadas suas necessidades reduzidas de minerais.
Neste momento, as baterias recarregáveis de íon-lítio (LIB) representam a solução mais favorável para sistemas estacionários de armazenamento de energia, sendo fundamentais para os acumuladores de energia que impulsionam a mobilidade que está a ser lançada por meio de bicicletas, carros, caminhões, trens e ônibus. Por outro lado, no processo de obtenção do lítio está presente o processo mineiro-extrativo, que pode conter perigos ambientais. Embora a implementação de um novo vetor energético seja uma das estratégias mais significativas para uma sociedade pós-fóssil, também existe a tendência para situar regiões e países como meros fornecedores de matérias-primas.
Esta mudança de escala energética implica uma maior tensão norte-sul, bem como conflitos nacionais internos e inter-regionais. Como tem acontecido no norte e centro de Portugal, onde as comunidades impactadas são de áreas economicamente deprimidas, zonas rurais marcadas pela desertificação, ainda que potencialmente ricas em recursos naturais e biodiversidade. No Brasil, a área explorada, localizada em Minas Gerais, tem um dos IDHs mais baixos do País e já é fortemente impactada pela exploração mineral e uma população que se divide entre os impactos, o abandono e a necessidade de sobrevivência, que aparece por meio do apoio às empresas que a empregam. Ou, ainda, em comunidades pré-hispânicas existentes na planície salina andina, onde se localizam as maiores reservas litíferas mundiais, cuja pressão por exploração coloca as comunidades em uma situação de violência constante. Populações que estão a ser confrontadas mediante a exploração dos seus territórios, do esgarçamento das suas relações e que, de alguma forma, deverão ser integradas às dinâmicas socioterritoriais e a sua relação com os poderes locais e nacionais.
Quando pensamos nas contradições da exploração do lítio, o chamado “petróleo branco”, nos perguntamos, desenvolvimento para quem?
Na engrenagem social que vivemos, baseada na desigualdade e levando em conta o impacto global das emergências climáticas, a concretização de um novo paradigma energético – com capacidade industrial, científica e técnica – apenas será viável se os recursos energéticos passarem a ser tratados como patrimônio por todas as regiões e países. Assim sendo, a ênfase da transição deveria ser situada em todo o sistema e não apenas em sua matriz, condicionada pelas premissas de volume, oferta, produção e investimentos.
(*) Elaine Santos é colaboradora do USP Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP.
(*) Maria da Penha Vasconcellos é professora da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP e do USP Cidades Globais.