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Ainda sobre os limites do acesso policial aos dados armazenados em celulares

Gabriel Desterro (*) | 06/09/2023 13:20

No ano de 2017, o Supremo Tribunal Federal reputou constitucional e reconheceu a existência de repercussão geral sobre a questão acerca da 1) licitude da perícia realizada pela Polícia em aparelho celular apreendido fortuitamente em local de crime, com acesso à agenda telefônica e registro de chamadas, sem autorização judicial (Tema nº 977).

No caso concreto levado à apreciação da Corte, o TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) determinou a absolvição do réu, suspeito de roubo circunstanciado, após reconhecer a ilicitude da prova colhida — determinante para a identificação da autoria delitiva — e, por derivação, da integralidade do aparato probatório constante dos autos. A Polícia teria manuseado o celular após o objeto ter caído ao chão durante a fuga do suspeito, tendo a análise dos dados armazenados no dispositivo possibilitado a identificação e prisão do autor do roubo.

Este artigo surge como proposta de uma visão complementar, e sob uma perspectiva diversa, ao excelente artigo já publicado nesta ConJur ano passado a respeito do mesmo tema. Conforme consta no citado texto, o julgamento se encontra com dois votos favoráveis à tese pela ilicitude do acesso policial a registro telefônico, agenda de contatos e demais dados contidos em aparelhos celulares apreendidos no local do crime atribuído ao acusado sem prévia decisão judicial (votos dos ministros Gilmar Mendes e Edson Fachin) e um voto pela licitude da prova obtida pela autoridade policial em tais condições (voto do ministro Dias Toffoli, relator do recurso). Após pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes, o julgamento ainda se encontra pendente de conclusão.

A discussão dos votos dos ministros passa pela elucidação das seguintes questões: 1) diferença entre interceptação de comunicações de dados e acesso a dados armazenados em dispositivo eletrônico; 2) interpretação adequada das garantias constitucionais de inviolabilidade da vida privada e da intimidade (artigo 5º, X, da CF) e das comunicações telefônicas e de dados (artigo 5º, XII, da CF) na era dos smartphones; e 3) os contextos fáticos que legitimam ou não a devassa de dados pela Polícia sem autorização judicial.

O texto do artigo 5º, XII, CF, dispõe ser "inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal". Embora haja divergência, prevalece na doutrina que o "salvo, no último caso" se refere exclusivamente às comunicações telefônicas. Ou seja, o constituinte teria excepcionado a inviolabilidade (permitindo a interceptação, portanto), apenas das comunicações telefônicas, e, ainda assim, desde que "para fins de investigação criminal ou instrução processual penal" e nas condições estabelecidas por lei (função esta desempenhada em nosso ordenamento jurídico pela Lei nº 9.296/96).

No tocante às comunicações por correspondência, telegráfica e de dados, por outro lado, a inviolabilidade seria absoluta, nem mesmo decisão judicial podendo vulnerá-la. Evidente que isso não significa a inviabilidade de acesso posterior ao conteúdo dessas comunicações, caso assim requeira o interesse público. É que, conforme as lições de Gustavo Henrique Badaró (fazendo referência à obra de Tércio Sampaio Ferraz Júnior), o elemento central para a diferenciação de tratamento entre as comunicações citadas é a instantaneidade: "embora não se possa interceptar o processo de comunicação em si — o envio da correspondência, do telegrama ou dos dados —, como tais elementos são perenes, a forma de restrição à privacidade não será a interceptação da comunicação, mas a apreensão do meio em que se consubstancia a comunicação".

Seguindo a linha argumentativa proposta, Badaró sugere que o juiz, no caso concreto, realize uma interpretação da Lei nº 9.296/96, na parte em que permite a interceptação de comunicação de dados por sistema telemático, desde que se trate de dados que não permaneçam armazenados em bancos de dados, sendo impossível a sua apreensão. Isso porque, caso sejam dados suscetíveis de apreensão posterior, desnecessária a interceptação da comunicação em si mesma, razão pela qual se deve prestigiar a liberdade do fluxo de informação e a privacidade dos envolvidos.

Desta forma, concluindo-se pela não inclusão do sigilo da comunicação de dados e registros telefônicos (dados armazenados) na cláusula constitucional do artigo 5º, XII, CF, há que se destacar não haver na Constituição qualquer vedação expressa ao acesso de dados armazenados em aparelho celular por parte da Polícia, mesmo sem autorização judicial. É verdade que a previsão do artigo 5º, X, CF ("são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação") abrange as informações contidas em um celular apreendido, conforme o próprio ministro Gilmar Mendes observou em seu voto. Contudo, concluir como consequência imediata e necessária disso a necessidade de autorização judicial para qualquer devassa de dados, mesmo em um contexto de potencial prisão em flagrante (como é o caso concreto objeto do recurso submetido à repercussão geral), é um passo demasiadamente generoso com a impunidade.

Outro argumento utilizado por Mendes em seu voto, de natureza infraconstitucional, seria o disposto no artigo 7º, III, da Lei nº 12.965/14 (Marco Civil da Internet), o qual prevê, dentre os direitos dos usuários, a "inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial". Salvo melhor juízo, a norma não busca regular situações como aquela submetida ao Tema nº 977. A questão submetida à análise da Corte se dá em relação à aferição da licitude da prova produzida durante o inquérito policial relativa ao acesso, sem autorização judicial, a registros e informações contidos em aparelho de telefone celular apreendido imediatamente no local do crime atribuído ao acusado.

O acesso pela Polícia em tais casos pode fazer cessar a prática de infração penal em curso, ensejar a prisão em flagrante de autor de um delito ou mesmo a recuperação de produto de crime. Trata-se de circunstância fática substancialmente distinta daquela em que, no curso de um procedimento investigativo, com tempo e todos os instrumentos disponíveis, a autoridade policial poderá representar pelo afastamento do sigilo de dados.

Assim, não havendo vedação expressa na Constituição e considerando as peculiaridades da atuação policial em situações de urgência, faz-se necessário perquirir em quais contextos fáticos o acesso policial aos dados podem ser tidos como proporcionais e razoáveis frente à garantia da inviolabilidade da privacidade. A consideração sobre essa (falta de) razoabilidade deve levar em conta, ainda, a perenidade ou não dos dados armazenados/comunicados e, principalmente, a utilidade na apreensão posterior desses elementos de informação, em observância à lógica utilizada pelo próprio constituinte quando insculpiu a garantia do sigilo às comunicações telefônicas e de dados. Há situações limítrofes nas quais a impossibilidade de acesso aos dados do aparelho se apresenta como verdadeiro escudo para prática de ilegalidades, o que, com toda certeza, não é o papel do direito constitucional à privacidade e à intimidade.

Como interessante exemplo recente, o Superior Tribunal de Justiça declarou a nulidade das provas obtidas mediante leitura de mensagens constantes da tela de bloqueio do aparelho celular de um indivíduo abordado com significativa quantidade de drogas. Conforme foi divulgado pela imprensa, policiais militares avistaram um conhecido do meio criminoso trafegando na garupa de um mototaxi e resolveram fazer a abordagem, momento em que encontraram com ele uma sacola com 12 tabletes de maconha. Ao pegar o celular do suspeito, os policiais viram na tela bloqueada uma troca de mensagens suspeita com outra pessoa e, após diligenciar no seu endereço, o indivíduo tentou fugir ao perceber a presença da polícia, ocasião em que os PMs invadiram a casa e apreenderam cocaína.

Em outro exemplo útil ao argumento que se pretende construir neste artigo, temos o paradigmático e sempre citado Caso Riley v. Califórnia, apreciado pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Na ocasião, entendeu-se pela ilegalidade do acesso policial aos dados contidos em aparelho celular de indivíduo que fora abordado em razão de uma infração de trânsito. Após a manipulação do celular no curso da abordagem, policiais viram nas conversas termos utilizados por gangues locais e, após uma varredura mais profunda no celular, a Polícia conseguiu relacionar o indivíduo a um tiroteio ocorrido poucas semanas antes.

Os casos citados revelam uma profunda diferença quanto aos pressupostos fáticos que justificaram a exploração do aparelho de celular e, mais ainda, quanto à urgência/necessidade do uso imediato da informação nele contida para evitar a perpetuação de uma prática criminosa. Enquanto no precedente do STJ o suspeito estava levando drogas para outro indivíduo, fato este que não poderia ser simplesmente ignorado pelos policiais (ainda que quisessem o fazer, uma vez que a mensagem apareceu na própria tela de bloqueio do celular,) o precedente estadunidense revelou uma abordagem policial tipicamente classificável como a prática da fishing expedition.

O termo é utilizado para designar "uma investigação especulativa indiscriminada, sem objetivo certo ou declarado, que 'lança' suas redes com a esperança de 'pescar' qualquer prova, para subsidiar uma futura acusação. Ou seja, é uma investigação prévia, realizada de maneira muito ampla e genérica para buscar evidências sobre a prática de futuros crimes" [5]. Inclusive, o crime investigado no caso Riley v. Califórnia havia ocorrido há semanas, não havendo elementos concretos que indicassem a ocorrência, naquele exato momento, de uma ação criminosa — situação que muito se distingue daquela em que os policiais possuem robustos indícios de que há um crime em curso, como no precedente do STJ.

Assim, esperamos que os eminentes ministros do STF tenham em conta, quando do julgamento do caso submetido ao Tema nº 977, que o dinamismo da atividade policial e a transitoriedade/utilidade dos dados acessados no contexto da investigação criminal devem ser considerados quando do sopesamento da garantia da inviolabilidade à privacidade com a proteção dos bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal. A consolidação de uma tese jurídica genérica e descolada da realidade policial irá engessar a atuação dos policiais e conferir uma proteção injustificada e desproporcional à privacidade de indivíduos determinados em detrimento de interesses públicos como a segurança pública, o direito à vida, ao patrimônio e à saúde.

E caso se dê a este posicionamento o rótulo de "utilitarista", como querem alguns, sejamos adeptos, pois, do liberalismo utilitário de John Stuart Mill. Segundo essa importante corrente filosófica, a qual prega, sobretudo, a liberdade e autonomia do indivíduo, a única finalidade que legitima o exercício do poder sobre algum membro de uma sociedade civilizada contra sua vontade é impedir dano a outrem. A privacidade da pessoa não é um artifício para deixar crimes sob a manta da impunidade e, se assim concebida for pelos Tribunais Superiores, esvaziará o sentido da proteção constitucionalmente dada a este importante princípio da liberdade.

(*) Gabriel Desterro e Silva Pereira é delegado de Polícia Civil do Estado de Mato Grosso do Sul.

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