Animais felizes fazem boa ciência
Felicidade, infelicidade e angústia, referem-se a estados de espírito do indivíduo e não podem ser medidos diretamente. Por outro lado, o conceito de bem-estar animal é baseado na crença de que seres chamados superiores, como nós, são capazes de sentir dor e prazer. A melhor forma de determinar se um animal está feliz ou angustiado é observar o seu comportamento. Com base nisso, podemos considerar um “animal feliz” como aquele que está alerta, mostrando um amplo repertório de comportamento, capaz de descansar de maneira relaxada, confiante e sem medo de coisas triviais. Obviamente, precisamos estar familiarizados com as particularidades do indivíduo para poder fazer esses julgamentos. Alguns indivíduos são naturalmente mais ativos, enquanto outros são mais quietos. No laboratório, pesquisadores buscam garantir o bem-estar dos animais e infligir o mínimo de sofrimento. Isso já está muito claro na comunidade científica; aqui, discuto sobre a felicidade do animal de laboratório e seu potencial em influenciar os resultados científicos.
Os casos mais óbvios de infelicidade ocorrem quando os animais estão doentes ou feridos, em que os sintomas variam de leves a graves. Atualmente, no entanto, em busca de evitar o sofrimento animal, tomamos como certo que os cientistas não trabalham com animais doentes ou feridos e que todas as necessidades básicas deles, como alimentação, água ou ambiente adequado de moradia, são atendidas. Permanecem, porém, outras causas potenciais de angústia, tais como problemas sociais com companheiros de gaiola agressivos, superlotação ou isolamento social. Além disso, mamíferos, em particular, ficam angustiados se forem manipulados de forma incorreta, especialmente quando contidos por pessoas desconhecidas para eles.
Um fator que cada vez mais é reconhecido como fonte de infelicidade é a incapacidade de o animal expressar seu comportamento natural quando vive em cativeiro. Tem se tornado evidente que os mamíferos podem ficar entediados ou recorrer a comportamentos anormais se o seu ambiente não for suficientemente complexo e interessante para eles.
Uma pesquisa de qualidade constrói o conhecimento ao responder a uma problemática de estudo e preocupa-se em controlar as variáveis que não estão sob investigação. Desse modo, o método científico pressupõe ausência de grandezas que podem variar ao longo do tempo ou de caso a caso, e essas variáveis têm uma relação direta com o bem-estar dos animais. Assim, a ciência que utiliza animais de laboratório é baseada em indivíduos saudáveis, a menos que a própria doença seja objeto de investigação. Em estatística, existe a variável de confusão – também chamada de fator de confusão –, a qual influencia tanto a variável dependente quanto a independente, causando distorção dos resultados verdadeiros. E, nesse cenário, a infelicidade pode ser considerada um fator de confusão, exceto quando o objetivo da pesquisa é testar um antidepressivo. Não sendo esse o caso, qualquer estresse deve ser evitado ou minimizado durante o experimento, a fim de diminuir a variabilidade dos resultados e, consequentemente, o número de animais necessário.
Para que isso ocorra, é necessária uma compreensão da espécie e da sua biologia, bem como a utilização de experimentos devidamente planejados. Os estudos em que o próprio experimento cause infelicidade, como a remoção prematura de filhotes, poderão ter seu efeito diminuído ou perdido se o animal não estiver anteriormente feliz. Para evitar o fator de confusão, os animais devem apresentar fisiologia e comportamento normais. Alguns pesquisadores podem argumentar que o comportamento é menos significativo do que a fisiologia, mas isso se baseia na suposição errônea de que mente e corpo são separáveis e de que uma não influencia o outro.
A literatura científica moderna mostra que o cérebro, o comportamento, os hormônios e o sistema imunológico são interdependentes, ou seja, a ocorrência de distúrbio em qualquer um deles irá afetar um outro ou todos os outros.
Os animais de laboratório experimentam um estresse significativo e repetido, como cativeiro, transporte, ruído, manuseio, contenção, entre outros, bem como os procedimentos experimentais realizados neles. Esse estresse pode resultar em consideráveis problemas de bem-estar psicológico e fisiológico, e os danos podem ser refletidos em comportamentos estereotipados, incluindo andar repetitivo e circular e até automutilação. As consequências físicas incluem efeitos adversos na função imunológica, respostas inflamatórias, alterações no metabolismo, aumento da suscetibilidade e progressão da doença.
O transporte de animais, por exemplo, de um fornecedor para um laboratório de pesquisa causa uma resposta ao estresse hormonal, bem como alterações nos perfis de leucócitos. O número menor que o normal de leucócitos no sangue significa que há uma diminuição das células responsáveis pela defesa do organismo; consequentemente, aumentam as chances de se contraírem infecções e outras complicações. Estudos com murinos (roedores) mostram que a taxa de cicatrização de feridas cutâneas é mais lenta em camundongos submetidos a estresse de contenção ou devido à alta densidade populacional. Por outro lado, é bem conhecido que criar animais em um ambiente enriquecido pode diminuir o estresse, melhorar a função imunológica e a plasticidade neural.
Embora seja preciso aceitar que nenhum animal pode viver uma vida totalmente livre de estresse, o que chamo de animal feliz é aquele prontamente capaz de lidar com os estressores aos quais está sujeito. Animais infelizes têm que suportar condições angustiantes além de seu controle, o que resulta em deficiências comportamentais e fisiológicas. Essas variáveis não controladas os tornam sujeitos inadequados para estudos científicos. Cientistas, portanto, não devem medir esforços para garantir a felicidade dos animais de laboratório se desejam que suas pesquisas sejam confiáveis e de qualidade.
(*) Lis Santos Marques é graduada em Medicina Veterinária e em Biologia, atualmente doutoranda no Programa de Pós-graduação em Ciências Veterinárias da UFRGS.