Apologia da verdadeira inovação científica
A História começa com a escrita. O período anterior é conhecido como pré-história. Não que os homens nada fizessem antes da invenção da palavra corporificada, porém, só a arte rupestre deixada em alguns lugares e poucos artefatos arqueológicos testemunham a presença do Homo sapiens nessa longuíssima era de nossa existência. No porvir, quando nenhum de nós estiver aqui, talvez alguns dos nossos manuscritos sobrevivam. As palavras perdurarão mais que nós mesmos. Sempre me maravilho quando penso nisso. Como seres mortais interagem com entes imortais? Somos um sopro; as palavras são eternas. Ontem, eu era um menino. Daqui a meros 100 anos, pó. E se algum dos meus textos for preservado, alguém poderá saber o que pensei. Digo, saberá se eu tiver escolhido sabiamente as palavras para traduzir o meu pensamento. Como disse Johann Georg Hamann: "Falar é traduzir – de uma língua de anjos em uma língua de homens, isto é, pensamentos em palavras, coisas em nomes, imagens em sinais". A escrita é um tipo de encarnação.
Embora eternas, as palavras não são imunes à ação dos filhos de Adão. Ao longo do tempo, novos significados surgem, muitas vezes até mesmo opostos ao original. Felizmente, esse processo é lento e, geralmente, medido em décadas ou séculos. Contudo, as necessidades da sociedade moderna, às vezes, provocam mudanças abruptas em algumas palavras. Nós acadêmicos, mergulhados em nossos afazeres, muitas vezes nem percebemos a maré subir até que nossas narinas inspirem a água, provocando uma tosse nervosa e sufocante. Vejamos um exemplo recente. A palavra “inovação” vem sendo cada vez mais empregada no meio acadêmico com um novo (e artificial) significado. Não faz muito tempo, a comunidade científica empregava-a com a conotação de “algo novo” ou de um avanço inesperado. Assim, a demonstração do último teorema de Fermat podia ser chamada apropriadamente de inovação. Ocorre que para incentivar a “inovação” (já digo em que sentido) e a pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo, a Lei 10.973 definiu inovação da seguinte forma: “introdução de novidade ou aperfeiçoamento no ambiente produtivo e social que resulte em novos produtos, serviços ou processos ou que compreenda a agregação de novas funcionalidades ou características a produto, serviço ou processo já existente que possa resultar em melhorias e em efetivo ganho de qualidade ou desempenho; (Redação pela Lei nº 13.243, de 2016)”.
Mudar o sentido das palavras tem consequências. Destarte, a referida demonstração do último teorema de Fermat não seria mais uma inovação porque não introduziu nenhuma novidade ou aperfeiçoamento no “ambiente produtivo e social”, vulgarmente conhecido como mercado, que resulte em novos produtos, serviços ou processos. A lei, restrita ao “ambiente produtivo”, tem produzido bons resultados, não resta dúvida. Porém, se suas definições forem transplantadas, sem as devidas ressalvas, para o contexto acadêmico, pode, inadvertidamente, induzir efeitos colaterais graves na ciência brasileira. Considerem os impactos duvidosos se os gestores decidirem adotar a produção de inovações (no sentido da lei) como critério de avaliação da pós-graduação. Provavelmente seriam prejudicados os programas voltados à pesquisa básica ou às ciências humanas, cujas temáticas são abstratas ou lidam com a Arte, a Literatura ou qualquer um daqueles saberes que não têm utilidade alguma, exceto tornar a vida humana realmente plena. E não se iludam aqueles que lidam com a pesquisa aplicada, pois só uma minúscula fração de seus resultados pode ser classificada como inovação de acordo com a nova definição. A transformação de um resultado de pesquisa em um produto de mercado é uma tarefa dificílima e demorada. Exige competências muito particulares que muitos de nós não possuímos. E notem que, segundo a lei, quem decide o que é ou não uma inovação é o mercado, não a academia.
Há um famoso gap entre academia e mercado. Cada um desses dois universos possui suas lógicas internas. Não há dúvida de que uma inovação no sentido da lei pode ser um resultado de pesquisa. Porém, não é igualmente óbvio se a busca por inovação pode também ser a principal motivação de uma pesquisa, substituindo a boa e velha curiosidade. Esta é ilimitada, enquanto aquela é limitada por fatores mercadológicos. Embora as palavras “inovação” e “motivação” rimem e pertençam à mesma classe gramatical, elas não são sinônimas. E, na academia, possuem acepções diferentes daquelas do mercado. Quiçá nunca ocorra aos burocratas das agências financiadoras impor aos pesquisadores a produção de inovações (no sentido da lei) como motivação primária. Não nego que produzir uma inovação possa ser uma motivação secundária, mas certamente não foi a força motriz que levou vários cientistas a consumirem suas vidas no escrutínio de um determinado problema. Não custa lembrar que nós, pesquisadores, quando descobrimos a resposta para uma pergunta, aumentamos, não diminuímos, nossa curiosidade. Pois faz parte da natureza paradoxal do conhecimento expandir as fronteiras do desconhecido. Ou seja, o cientista nunca satisfaz completamente sua sede por respostas.
Juntamente com o novo entendimento de inovação surgem posturas que merecem ponderação, como, por exemplo, a tendência de colocar o foco nos resultados. Se no ambiente produtivo essa atitude é necessária e, em alguns casos, vital, na área científica não se pode dizer o mesmo. Temo que, se a conotação legal de inovação prosperar nos meios acadêmicos e de fomento, a pesquisa se torne refém de seus resultados. Ocorre que numa pesquisa científica a direção é sempre dada pela pergunta, nunca pelo resultado. Este é contingente e subordinado condicionalmente àquela. Na ciência, o resultado é uma miragem no deserto. Quanto mais próximo, mais distante e metamorfoseado se apresenta. Quem de nós defendeu no doutorado exatamente o que prometeu na proposta de pesquisa? Não recordo de quem é a afirmação, mas um projeto de pesquisa que sabe o que vai entregar é um projeto pobre. Não iria tão longe, diria, ao invés, se tratar de um projeto de desenvolvimento. Nas universidades e institutos de pesquisa há espaço para os dois tipos. No entanto, sem projetos de pesquisa autênticos, vamos inadvertida, mas inexoravelmente comprometendo a inovação, como o fogo de uma lareira que se extingue lentamente por falta de lenha.
Historicamente, essa tendência utilitarista não é nova. Erwin Chargaff (1905 – 2002), ainda no século passado, já alertava: I would say that most of the great scientists of the past could not have arisen, that, in fact, most sciences could not have been founded, if the present utility-drunk and goal directed attitude had prevailed [1]. Instrumentalizar a criatividade científica é castrar a verdadeira inovação. O processo criativo é complexo. Para se ter uma ideia da sua complexidade, por mais inusitado que possa parecer, um dos maiores matemáticos ingleses, G. H. Hardy (1877-1947), atribuiu à atividade inconsciente um papel decisivo nas descobertas [2]. Inconsciente?! Sim, há algo imponderável aí. Um resultado pode estar diante de nossos olhos e permanecer completamente invisível até que outrem o traga à luz. Embora seja extremamente constrangedor confessá-lo, nem sempre conseguimos enxergar as implicações de nossas pesquisas. Muitos de nós somos míopes (alguns cegos) quando se trata de ver utilidade. Triste fato [3]. O próprio Chargaff, por exemplo, descobriu em 1951 a “regra de paridade” que afirma: numa molécula de DNA, a quantidade de Timinas (T) é igual à quantidade de Adeninas (A), a mesma paridade ocorrendo entre Citosinas (C) e Guaninas (G). Desgraçadamente, ele foi incapaz, não obstante seu esforço e genialidade, de extrair o corolário de sua descoberta [4], ou seja, que a estrutura da molécula de DNA era uma dupla hélice. Foram necessários mais dois anos para que a descoberta de Chargaff, juntamente com as imagens de raio-X de Rosalind Franklin (1920-1958), revelassem seus segredos a James Watson e Francis Crick (1916-2004).
Concluo: não há nada de errado com o utilitarismo, desde que não se torne pré-requisito para a pesquisa. A lei 10.973 quis incentivar um tipo muito particular de inovação dentro do ambiente produtivo e, no seu devido escopo, é benéfica. Cabe a nós, cientistas, não permitir que dialetos exógenos sejam, indiscriminadamente, importados e aplicados na ciência. Tenhamos a sabedoria de preservar a curiosidade [5] como nossa principal motivação.
[1] Erwin Chargaff, Heraclitean Fire: Sketches from a Life before Nature, The Rockefeller University Press, New York, 1978. Tradução livre: “Eu diria que a maioria dos grandes cientistas do passado não poderia ter surgido, e que, na verdade, a maioria das ciências não poderia ter sido fundada, se a atual atitude de inebriado utilitarismo e foco nos objetivos tivesse prevalecido”. O livro pode ser baixado gratuitamente no site da editora: https://books.rupress.org/catalog/book/heraclitean-fire
[2] G. H. Hardy, A Mathematician’s Apology, Cambridge University Press, Cambridge, 2012. A citação é a seguinte: “...that unconscious activity often plays a decisive part in discovery; that periods of ineffective effort are often followed, after intervals of rest and distraction, by moments of sudden illumination; that these flashes of inspiration are explicable only as the result of activities of which the agent has been unaware – the evidence for all this seems overwhelming”.
[3] Obviamente existem cientistas empreendedores e, por aptidão nata, têm uma visão utilitarista de suas pesquisas. Porém, são raros. Não apenas no Brasil, mas no mundo todo.
[4] “When I began to realize how unique were the regularities we had discovered, I tried, of course, to understand what it all meant, but I did not get very far” (Erwin Chargaff).
[5] https://www.youtube.com/watch?v=fnzNIferCzY
(*) Michel E. Beleza Yamagishi é autor do livro Mathematical Grammar of Biology. É doutor em Matemática Aplicada pela Unicamp. Atualmente é pesquisador da Embrapa Agricultura Digital e atua na área de Bioinformática.