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Arte e ciência no pampa fantástico

Laura Dias Fagundes (*) | 25/03/2023 16:30

Você já foi um pesquisador? Procure nos recantos da sua mente uma memória esquecida: livros empoeirados num quarto vago, caídos atrás de prateleiras, contendo saberes dos mais indecifráveis; mapas amarelados e enrolados metodicamente, ilustrados com terras impossivelmente distantes; fotos de lugares e pessoas que o tempo se recusou a apagar; cartas, conchas, pedras, penas, quadros, álbuns. Talvez você já tenha passado pela sensação de descobrir histórias esquecidas, talvez esse possa ser o empurrão para que você encontre esses mundos secretos atrás das páginas de um manual ou almanaque.

Quimeras Naturais: Flora excogitari et Fauna ludi é meu trabalho de conclusão de curso, produzido no curso de Artes Visuais – Bacharelado, sob orientação da professora Lilian Maus. Nele, emulo esse sentimento da minha infância de descobrir o mundo nos livros antigos da casa dos meus avós. Foi através de uma instalação participativa com objetos têxteis, desenhos e plantas que recriei o ambiente de trabalho de uma pesquisadora fictícia. Sobre as mesas e prateleiras da instalação, um diário de bordo, ilustrações botânicas, materiais pessoais de desenho, cartas e postais, livros e esculturas têxteis de plantas que não se parecem com nada deste mundo. Essas esculturas são plantas e liquens fictícios, catalogados e estudados nas pranchas ilustradas e no diário sobre a mesa.

O diário conta sobre as expedições dessa pesquisadora misteriosa pelo pampa gaúcho e os seus encontros com a flora fantástica. Ela disserta sobre esses espécimes misteriosos, seus hábitos e particularidades; descobrimos aos poucos sobre a rotina dessa pessoa. Seu temperamento, relação com outros pesquisadores, erros e frustrações, mas também sobre todo o carinho e fascínio que ela sente pelo pampa e toda a vontade que ela tem de descobrir cada vez mais sobre esses vastos campos.

Estas plantas misturam realidade e sonho: pelo estudo das classificações taxonômicas relaciono a flora imaginária aos demais seres do pampa. Muito foi descoberto nesse processo. Estruturas que me ocorriam naturalmente através de sonhos depois eram recontextualizadas com a pesquisa e pareciam mesclar-se naturalmente à paisagem.

Uma das espécies criadas, Solaris crudelis, é uma bromélia carnívora estroboscópica que se adapta de acordo com a disponibilidade de nutrientes no solo. Achei estar criando um novo nicho, por não saber da existência de nenhuma outra bromélia como essa no mundo. Imagine minha surpresa ao descobrir que não apenas existe uma bromélia carnívora (uma apenas!), mas que ela é brasileira! Foi um momento de perceber que a biodiversidade do planeta se estende até mesmo por lugares onde a imaginação não alcança. Esse encantamento com o mundo é algo que tentei reproduzir na narrativa do diário de bordo e nos desdobramentos dessa pesquisa.

Visando criar uma proposta pedagógica com o tema das plantas inventadas, propus uma oficina de costura no Colégio de Aplicação da UFRGS.

Com minha colega Luísa Sirangelo, e a supervisão da professora Fernanda Gassen, montamos oficinas de tapeçaria e costura para as turmas do 4.º e 5.º anos, respectivamente.

Para o 5.º ano, propusemos aos alunos que criassem suas próprias plantas fictícias, baseadas em memórias e emoções. Durante as semanas de aula, passamos por diversas etapas, apresentando referências de artistas que trabalharam o tema da natureza em suas obras, criando esboços com cada aluno e, então, transformando os esboços em pelúcias botânicas. No quarto ano, criamos uma tapeçaria coletiva, em que cada aluno bordava um quadrado. A composição dos quadrados formava uma imagem maior, que foi criada a partir de uma colagem que eles fizeram juntos com referências de artistas, assim como a outra turma.

As aulas foram repletas de processos de aprendizado, não só para os alunos, mas para mim também. Pude solidificar minhas estratégias de ensino e entender o que dava certo e errado dentro de uma aula voltada a fazeres manuais, como a costura e o bordado.

Senti que as crianças se conectaram com a ideia de forma muito orgânica, trazendo pulsões e inspirações estéticas próprias. O contato com as outras professoras foi essencial para a atividade. Pela conexão que elas tinham com seus alunos pudemos garantir que as atividades transcorressem tranquilamente. Luísa trouxe sua própria sensibilidade para as aulas garantindo que tudo acontecesse de forma muito coletiva.

Acho importante mencionar nossa colaboração nas aulas, pois acredito muito no potencial autoafirmativo e aglutinador dessa pesquisa. Pelo olhar de cada aluno e do professor, a flora fantástica se expande de formas surpreendentes, que os limites da minha imaginação não seriam capazes de alcançar.

Lembro de um aluno que propôs uma elaborada planta carnívora, com folhas cheias de dentes e diferentes órgãos produtores de ácidos digestivos. Nas tapeçarias, alguns alunos desenvolveram seus próprios pontos no bordado das talagarças, criando efeitos tridimensionais. Todos esses processos se desenrolaram de forma natural nas salas de aula.

Gostaria que, além de um objeto artístico e uma pesquisa poética, esse trabalho também possa ser uma ferramenta de descoberta para os alunos que foram tocados pelas oficinas. Ao resgatar aquele momento da minha infância em que eu era a pesquisadora descobrindo novos mundos, pude trazer essa proposta a outras crianças. Gosto de imaginar que estou plantando as sementes de uma futura geração que se preocupa em olhar para dentro para então deixar florir para fora.

Então pergunto novamente: você já foi um pesquisador? Se ainda não, por que não se perder nas prateleiras esquecidas de uma biblioteca ou nos corredores de um antiquário? Talvez entre as copas de um jardim ou praça, sob as pedras cobertas de musgo. Nesses lugares esquecidos dorme o espírito indômito da sua infância. Colete, pedrinhas, galhos, conchas e folhas. Desenhe, fotografe, escreva. E então sonhe. Espero que encontre seres incríveis na sua próxima viagem!

(*) Laura Fagundes é graduanda em Artes Visuais – Bacharelado pela UFRGS e atua como artista e arte-educadora.

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