Arts & Crafts: quando a arte ousou ser útil
A Arte deve servir a um fim externo ou deve preservar seu valor intrínseco, distanciando-se de qualquer vínculo suspeito com a utilidade? Sem resposta definitiva, essa é uma pergunta que perpassa a História da Arte e ainda suscita infinitos debates. Na verdade, durante muito tempo, a arte sempre foi “servil”, mas os desdobramentos teóricos modernos tornaram quase um tabu se falar em “função da arte”.
No entanto, sempre há rebeldes. Uma figura que defendeu explicitamente a utilidade da arte é o britânico William Morris, pai da escola Arts and Crafts, a qual deixaria suas marcas profundas no outro lado do mundo, na cidade de Pelotas. A expressão em inglês corresponde a “Artes e Ofícios” em nossa língua. Trata-se de uma concepção de fazer arte inspirada na ideia grega da techné, do saber fazer, que perdurou até o período medieval com as guildas, nas quais artífices trabalhavam em uma espécie de cooperativa.
O surgimento desse movimento corresponde à época de erupção do capitalismo em decorrência da emergência e consolidação de uma burguesia fabril. A Revolução Industrial que se afirmava há mais de um século como a grande locomotiva econômica europeia tornava os objetos cotidianos cada vez mais padronizados e eivados do gosto de uma classe atenta apenas à maximização do lucro com a produção seriada, o que aprofundou o abismo social entre burguesia e classe operária. Nesse momento, destacaram-se figuras como John Ruskin (1819–1900) e William Morris (1834–1896): o primeiro, grande crítico do processo de industrialização; o segundo, grande nome que impulsionou o movimento Arts and Crafts.
Ao criticar os métodos de produção, assim como a falsa sensação de progresso e os processos de alienação gerados pela rotina de trabalho na cadeia produtiva, Ruskin abre caminho para que Morris proponha a recuperação da artesania característica do período medieval, em que os artesãos tinham total conhecimento dos materiais e modos de produção dos seus objetos.
Foi promovido, assim, um modelo educacional que se destacava como uma saída à crescente industrialização, propondo uma alternativa para a mecanização que, além de alienar os produtores, colocava no mundo objetos totalmente desprovidos de identidade própria e sem preocupação com o conforto no uso.
Para Morris, o ornamento era algo necessário e deveria ser acessado por todos e disponível em todos os momentos, inclusive no cotidiano doméstico, decorando não apenas igrejas, mas também o interior das residências, acompanhando a vida de maneira geral. Conforme escreve Florence Boos em “The Routledge Companion to William Morris”, sua concepção de arte era de que ela deveria ser útil em todos os sentidos.
O leitor impaciente talvez queira me perguntar, agora, como é que Pelotas entrou nessa história toda. Pois bem, hoje mais conhecida pelos doces que produz, Pelotas já teve suas épocas mais glamourosas. No seu passado glorioso, a cidade viu inaugurar a escola de agronomia, em 1883, uma das primeiras do país, que, em 1887, responderia pelo nome de Escola de Agronomia, Artes e Ofícios. Chamada de “a Paris dos pampas”, Pelotas recebera esse apelido por manter um intenso intercâmbio com a Europa no século XIX, trazendo não apenas costumes e vestimentas ao gosto europeu, mas também o estilo Artes e Ofícios, o que ajudou a dar feição aos ornamentos arquitetônicos, inicialmente importados e logo produzidos na cidade.
Muitos desses elementos ornamentais passariam a enfeitar a arquitetura pelotense, cujos muros eram inicialmente levantados com mão de obra cativa e logo teriam projetos assinados por imigrantes europeus, que buscavam na cidade um nicho sedento por cultura e costumes do velho continente. Segundo o historiador Mário Osório Magalhães, tal movimentação foi decisiva para que, em maio de 1882, fosse levada a público a proposta de construção daquele que seria o Liceu de Artes e Ofícios.
Infelizmente, assim como a cidade de Pelotas testemunhou a sucessiva perda do seu poderio econômico, o movimento Arts and Crafts também se viu entrar na fila dos que “não deram muito certo”. O movimento surgiu como uma oposição à industrialização e à exploração dos trabalhadores. No entanto, devido ao modo de trabalho artesanal muito custoso, o qual replicava as guildas medievais, produzindo objetos únicos ou com séries limitadas em materiais diferenciados, os produtos acabaram sendo acessados apenas por uma classe seleta, que viu naqueles elementos únicos uma forma de se destacar da multidão indistinta. Assim, o movimento inicialmente dirigido à classe trabalhadora acabou sendo rapidamente apropriado pelo capitalismo. O antídoto tornou-se veneno.
Engana-se, no entanto, quem julga que a arte se intimida com o fracasso e a cidade se afunda no esquecimento.
Eis que um artista quase pelotense cruzou com leveza e elegância o campo minado da arte útil versus arte inútil. Falo do artista rio-grandino Daniel Acosta, que há muito reside em Pelotas. Entre a vasta produção do artista, encontra-se uma série de obras que parte da reprodução da técnica empregada pelos artífices do final do século XIX. A época de produção dessas obras coincide com as grandes demolições das casas e palacetes históricos da cidade de Pelotas, o que motivou uma série de políticas públicas locais para tentar frear as demolições e preservar os prédios históricos restantes, os quais, doravante, deixariam de ser apenas moradias e adquiririam um sentido monumental, testemunhando o passado opulento da cidade.
Será que o gesto do artista de recuperar a técnica antiga da extinta escola Arte e Ofício pode indicar um sutil aceno àquele projeto grandioso de William Morris, coroando a arte com um papel emancipatório? Essa é uma pergunta que cabe ao próprio leitor buscar a resposta, indo conhecer ele mesmo as obras maravilhosas de Daniel Acosta.
(*) André Winter Noble é doutorando no PPG em Artes Visuais da UFRGS.