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Assédio e violência no trabalho: educar para a prevenção

Renata Dutra (*) | 27/07/2021 08:30

No dia 25 de junho de 2021 entrou em vigor, no âmbito internacional, a Convenção nº 190 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), documento que se dedica à eliminação do assédio e da violência no ambiente laboral. Embora o Estado Brasileiro ainda não tenha ratificado a referida Convenção – uma falha que precisa ser corrigida –, ainda assim, ela oferece subsídios fundamentais para compreender e moldar estratégias de combate ao assédio moral nas relações de trabalho, seja no setor público ou no setor privado, tornando os ambientes de trabalho mais saudáveis do ponto de vista psíquico e aptos a promover o bem-estar daqueles e daquelas que vivem do seu trabalho.

No direito brasileiro não há uma definição legal de assédio moral. Isso não tem impedido que o tema seja objeto de proteção jurídica, já que a prática de assédio viola direitos que estão resguardados pela nossa ordem jurídica, como dignidade, honra, saúde, entre outros, de modo que tanto a literatura jurídica quanto as decisões proferidas pelos Tribunais – chamadas de jurisprudência – já identificam, conceituam e, consequentemente, repudiam o fenômeno.

Ainda assim, é certo que o reconhecimento do que seja a prática e das suas consequências por um texto normativo, sobretudo com a amplitude e a qualidade técnica com que procedeu a OIT, representaria um avanço no combate ao assédio e a violência laborais, cada vez mais difundidas em um mundo do trabalho de muita competitividade e individualização e, também, no bojo de uma sociedade como a brasileira, em que, infelizmente, se observa o recrudescimento da intolerância em relação às diferenças e às demandas de grupos historicamente vulnerabilizados.

A OIT identifica violência e assédio como um conjunto de comportamentos e práticas inaceitáveis, ou de ameaças de tais comportamentos e práticas, sejam elas manifestadas em uma única vez ou de maneira repetida, que tenham por objeto, que causem ou que sejam suscetíveis de causar danos físicos, psicológicos, sexuais ou econômicos, aí incluída a violência e o assédio por razão de gênero, que são compreendidos como práticas dirigidas contra as pessoas em razão de seu sexo ou gênero, ou que afetam de maneira desproporcional pessoas de um sexo ou gênero determinado, o que inclui o assédio sexual. Ou seja, danos materiais e morais decorrentes do assédio são reconhecidos.

Essa conceituação é importante porque retira a ênfase da intencionalidade ou do perfil do agressor e da extensão da prática no tempo: pelo contrário, o que tem relevo é o potencial lesivo da conduta, ainda que ela ocorra uma única vez, e a especial vulnerabilidade das vítimas, sendo digno de atenção que a Convenção se abre para uma abordagem interseccional do fenômeno, como expressamente indicado em seu preâmbulo.

Essa abordagem é convergente com algo que estudiosas e estudiosos do fenômeno já vinham observando há algum tempo: a identificação do assediador como sujeito perverso, que reiteradamente pratica agressões com o objetivo de minar ou excluir vítimas determinadas no ambiente laboral, embora faça sentido e possa ser identificada em alguns contextos específicos, tem cada vez mais dado lugar à identificação de práticas, intituladas como assédio moral organizacional, em que as condutas estão dispersas no ambiente laboral e estão mais relacionadas a padrões de gestão que a desvios de comportamento individuais.

Diante de contextos de incentivo à produtividade, enfrentamento de crises e hiperconcorrência, por vezes, a violência e o assédio se colocam como instrumentos tolerados ou silenciosamente estimulados por determinados padrões de gestão a fim de alcançar metas de desempenho, como um “convite” generalizado a que condutas assediadoras sejam adotadas em cadeia pelos sujeitos engajados na organização, em um processo que degrada o ambiente de trabalho e que naturaliza ou banaliza comportamentos repudiáveis em prol da consecução de objetivos estabelecidos.

Padrões e exigências de desempenho que não consideram diversidades e fragilidades humanas tendem a reforçar vulnerabilidades, expondo preferencialmente os grupos vulneráveis às práticas de assédio, em um ambiente de intolerância e banalidade do mal. Também se tornam alvos preferenciais aqueles que resistem às práticas assediadoras, que passam a integrar os grupos vulneráveis.

Embora a Universidade não seja uma empresa e não estejamos diretamente inscritos em finalidades lucrativas e concorrenciais, tanto os espaços da Administração Pública quando os espaços de produção de conhecimento têm, aos poucos, absorvido  valores e métricas da gestão neoliberal, que são recrutados destacadamente em momentos de crise e austeridade, como o que vivenciamos no presente.

Mais que nunca, é preciso estar alerta e repensar práticas, fluxos de trabalho e padrões de comportamento que adotamos no dia a dia e, sobretudo, em contextos críticos. O assediador, no ambiente laboral, pode não ser como um vilão de filme, mas, sim, alguém como cada um de nós, pressionados por metas, resultados e mergulhados em comportamentos automatizados que podem reproduzir violências.

(*) Renata Dutra é professora adjunta de Direito do Trabalho da Universidade de Brasília. Doutora e Mestra em Direito pela UnB.

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