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“Boralá resgatar os jogos de tabuleiro do armário!”

Luciano Bedin da Costa (*) | 05/09/2022 09:28

Dos jogos que hoje jogamos, os mais antigos sem sombra de dúvida são os jogos de tabuleiro. Estima-se que tenham surgido há mais de 7 mil anos no Egito e Mesopotâmia, passando a se tornar uma verdadeira epidemia ao longo dos séculos. Quem nunca se encantou com algum jogo de tabuleiro? Quem nunca se irritou por ter perdido alguma de suas peças? Quem nunca se vangloriou por ser “bom” ou “boa” em algum jogo de tabuleiro?

O certo é que o jogo de tabuleiro mobiliza muitas questões por parte de quem joga, sendo que a chave de seu sucesso diz respeito a sua simplicidade, à maneira como analogicamente tem a potência de despertar emoções e habilidades diversas, adaptando-se a cada etapa do desenvolvimento humano. De certa forma, o encanto pelos jogos de tabuleiro se dá pela forma como reproduzem aspectos de nossa vida cotidiana, vida esta que não deixa de ser uma vida de tabuleiros. É só imaginarmos o espaço onde moramos, a disposição dos cômodos e os deslocamentos que fazemos no seu interior: do quarto vamos ao banheiro, do banheiro à sala, da sala à cozinha…  Não haveria nisso uma semelhança com determinados jogos de tabuleiro? Se formos expandir a perspectiva, em nosso circular pela cidade, esses tabuleiros acabam por se proliferar, tornando-se mais complexos à medida que ocupamos outros espaços.

Paulo Freire dizia que uma aula começa bem antes de ela iniciar, que já estamos em situação de aula quando estamos pensando e preparando essa mesma aula. Assim acontece com determinados jogos: às vezes começamos a jogá-los mesmo antes de abrirmos a caixa.

O que chamamos de “estado de jogo” (que é quando entramos no jogo) costuma se dar quando nos reunimos para pensar que jogo iremos jogar, as decisões por esse ou aquele, em quem irá ou não participar. É só observarmos um grupo de crianças se preparando para jogar, a maneira como decidem o que irão jogar, o modo como preparam o espaço: há toda uma excitação lúdica que já faz parte do jogo, mesmo que o jogo não tenha formalmente iniciado.

Nos jogos de tabuleiro, há um elemento diferencial que não pode de forma alguma ser ignorado. Falamos do tabuleiro, essa superfície que ao mesmo tempo enquadra a experiência do jogo (dando-lhe um contorno) e expande as possibilidades do jogo. Quando há um tabuleiro, as(os) jogadora(e)s sabem que precisarão respeitar e se deslocar nesta superfície concreta e fantasiosa, que, mesmo simples (no aspecto formal), comporta uma série de experiências, tempos, narrativas e espaços.

Os primeiros jogos tinham o caráter do conflito e da batalha, o que respondia à lógica de socialidade constituída à época, calcadas nas disputas por poder e territórios. Há, contudo, indícios de jogos de tabuleiros em praticamente todas as culturas do mundo. No continente americano, diz-se que os jogos de tabuleiro iniciaram com os Incas, sendo que passaram a fazer parte de diversas comunidades indígenas, cada qual incorporando suas características.

Se formos analisar cada jogo de tabuleiro, veremos que eles respondem aos contextos em que foram criados ou em que se popularizaram.

Vocês já pensaram a razão de as pessoas gostarem tanto do War? E do Banco Imobiliário? Jogo da Vida? Detetive? Em termos históricos, dizemos que há jogos de tabuleiro de primeira geração (xadrez, dama, jogo da velha, batalha naval, etc.); de segunda geração, que combinavam tabuleiro, cartas e dados (banco imobiliário, War, Detetive, etc.); e jogos de terceira geração, que incorporam tabuleiros virtuais e se constituem de modo colaborativo.

Como educadoras(es), é importante que estejamos atentas(os) aos jogos de tabuleiro mais interessantes para cada etapa ou fase de desenvolvimento das(os) nossas(os) estudantes.

Na primeira etapa de vida (que se estende até a entrada na alfabetização), os jogos de tabuleiro devem ser mais sensoriais e espaciais, favorecendo a construção de uma lógica respeitosa para com as regras (que devem ser simples e compreensíveis), bem como para com as(os) demais jogadoras(es). É possível que o(a) educador(a) crie jogos simplificados com materiais disponíveis e que sejam próximos da realidade das crianças: tabuleiros que podem ser marcados com giz no chão e pedrinhas ou objetos encontrados no meio do qual fazem parte. Exemplos de jogos de tabuleiro muito interessantes nessa etapa são o jogo da amarelinha e o jogo da velha.

Na segunda etapa da vida (que vai da alfabetização até a quarta série), os jogos devem favorecer a construção do pensamento lógico, tendo-se em vista que a criança já tem consigo a construção da letra. Nessa etapa, os jogos ganham em complexidade, ainda que a criança tenha de construir para si o sentimento de alteridade, de que há outra criança jogando, e que esta pode ter habilidades e concepções diferentes sobre o jogo. Jogos de tabuleiro, como Dama, são muito bem-vindos, bem como jogos que favoreçam o reconhecimento de letras e palavras. Nessa etapa é interessante que as crianças leiam as regras e tentem, entre elas, esclarecer dúvidas.

Na terceira etapa da vida (que vai da quinta-série até a sétima), os jogos de tabuleiro passam a ter o caráter mais explícito de disputa, havendo a internalização do jogo como estratégia. Jogos como Banco Imobiliário e Detetive costumam ser bem aceitos nessa fase.

Na quarta etapa da vida (que vai do oitavo ano ao final do ensino médio), os jogos ganham caráter coletivo. Há um interesse em jogos que promovam a criação de duplas ou trios, onde as(os) adolescentes possam coletivamente definir estratégias, bem como se relacionar de forma coletiva com as frustrações. É nesta fase que entram os Role Playing Games (RPGs), uma verdadeira febre entre os jovens de nosso tempo. Essa é também a fase em que determinados jogos passam a ter menos interesse e em que a virtualidade ganha maior espaço. Nesse sentido, o jogo de tabuleiro se torna ainda mais importante, pois é quando as(os) adolescentes e jovens precisarão destinar um tempo a uma experiência analógica de contato e interação presenciais.

Como educadoras(es), é importante que estejamos atentas(os) às configurações do tempo presente. Se, por um lado, há um assédio muito grande por parte das grandes corporações ligadas às virtualidades, por outro há uma imensidão de corpos dispostos a brincar e a jogar, valores que de modo algum precisam ser colocados como contraditórios.

Se o interesse pelos jogos analógicos tem se tornado menor, é papel nosso, enquanto adultos, resgatar um pouco do calor e da alegria que os jogos de tabuleiro são capazes de proporcionar.

Então ‘boralá’ pegar os jogos do armário, tirar o pó e convidar nossas crianças e jovens para jogá-los. Sem este convite a disputa fica mesmo desleal, uma vez que uma tela parece ser muito mais interativa do que um tabuleiro de papel ou madeira. É possível que estes jovens joguem de olho em seus celulares, que, entre uma movimentação e outra no tabuleiro, acompanhem as mensagens e as postagens nas redes sociais. Se for assim, está tudo ok. Antes de pensarmos em uma disputa entre o virtual e o analógico, o que vale é a vida em sua diversidade.

(*) Luciano Bedin da Costa é professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS, onde ministra disciplinas de jogo e educação.

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