Casa e maternidade
A epígrafe reflete a urgência de se entenderem as várias modalidades de prisões que diversas mulheres vivenciam diariamente. Apesar de as correntes que aprisionam as mulheres serem diferentes, a premissa de que nenhuma delas será livre enquanto todas não o forem é o fio condutor que motiva a pesquisa apresentada neste texto. Nesse sentido, por mais que Audre Lorde não trate especificamente sobre prisões, ela entende que as correntes que aprisionam as mulheres estão para além das paredes de concreto de uma penitenciária. Ainda assim, esta pesquisa, realizada no Programa de Pós-graduação em Direito da UFRGS, pretende refletir sobre cárcere e aprisionamento femininos, discutindo temas como maternidade no cárcere e políticas criminais destinadas às mulheres. Especificamente, a investigação tem por finalidade compreender a prisão domiciliar de mulheres mães e gestantes no estado do Rio Grande do Sul.
A prisão, em qualquer uma das suas modalidades, pressupõe sofrimentos e desencadeia efeitos para além da pessoa apenada, causando prejuízos tanto para os filhos como para toda a rede de apoio familiar. Em relação às mulheres, esse cenário é ainda mais complexo, sobretudo porque o cárcere não foi pensado para recebê-las. Como escrevem Ana Borges e Naila Franklin, a realidade que se impõe é, contudo, de uma política de encarceramento em massa que atinge cada vez mais a população feminina, cujas realidades são marcadas por violências desde antes do aprisionamento. A temática é complexa e, por isso, precisa abordar questões como violência de gênero e racial, maternidade e cuidado por meio de lentes de análise adequadas para entender a realidade dessas mulheres. Assim, os diálogos que envolvem os estudos de gênero e as criminologias partem de uma perspectiva interseccional inspirada em autoras como Kimberle Crenshaw e Patricia Hill Collins, envolvendo as interações entre os diversos marcadores sociais.
Segundo o levantamento do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) de 2018, entre 2000 e 2016 o aumento do encarceramento feminino no Brasil foi de 656%, um percentual bem maior do que o de aprisionamento masculino no mesmo período. Os dados apontam que os presídios femininos brasileiros são compostos, em sua maioria, por mulheres negras, pobres, com pouca escolaridade, presas por crimes relacionados ao tráfico de drogas e que estão presas preventivamente, ainda sem condenação. Além disso, segundo o relatório, 74% das mulheres em situação de prisão no país são mães.
Alguns avanços normativos e judiciais foram alcançados com a finalidade de possibilitar a convivência da mãe com seus filhos fora do ambiente prisional, por meio da prisão domiciliar, como o Marco Legal da Primeira Infância (Lei 13.257/2016), a importante decisão do STF no Habeas Corpus Coletivo 143.631/2018 e, por fim, a Lei 13.769/2018. No início da pandemia de covid-19, em 2020, foi publicada a Recomendação n.º 62 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com o fim de endereçar medidas de saúde ao sistema prisional e socioeducativo.
Importa destacar que a prisão domiciliar vem sendo utilizada como ferramenta para a garantia dos direitos de mulheres gestantes e mães aprisionadas.
Contudo, ainda há uma certa resistência de parte dos magistrados em conceder a prisão domiciliar para essas mulheres, alicerçada em justificativas que evidenciam a suposta incompatibilidade da figura da mulher mãe com a da mulher infratora.
Um estudo realizado no estado do Rio Grande do Sul em 2018 revela o reforço dos estereótipos de gênero e maternidade nos argumentos de magistrados gaúchos ao avaliarem os pedidos de concessão de prisão domiciliar.
Ainda são escassos os estudos que fazem um levantamento de quantas dessas mulheres estão em prisão domiciliar e, dentre elas, quantas estão trabalhando, se elas têm algum tipo de assistência social ou mesmo se estão tendo garantidos os seus direitos básicos. Além disso, muitas mulheres encarceradas no país não têm nem mesmo domicílio, o que torna a prisão domiciliar incompatível com a condição socioeconômica de algumas delas. Aquelas que conseguem ultrapassar as resistências judiciais, alcançando a concessão da medida, ainda se deparam com uma série de desafios e durante a prisão domiciliar como a manutenção do lar, o sustento dos filhos, dificuldades para atenderem às burocracias exigidas para retornarem ao mercado de trabalho. Conforme Ana Borges e Naila Franklin, isso ocorre porque, na maior parte das vezes, elas são as únicas responsáveis pelos filhos, precisando conciliar a maternidade com as regras da prisão domiciliar e com as necessidades do mercado de trabalho.
O relatório intitulado Imprisoned at home: women under house arrest in Latin America, realizado no ano de 2020, analisou a prisão domiciliar de mulheres em sete países latino-americanos. O estudo evidenciou que as mulheres em prisão domiciliar têm dificuldades de realizar atividades básicas como ir ao médico, levar os filhos na escola e conseguir emprego. Nos países analisados, a burocratização para realizar tais atividades é tamanha que essas mulheres se veem sem amparo e se sentem como se ainda estivessem presas.
Isso demonstra que, mesmo em prisão domiciliar, a realidade dessas mulheres não deixa de ser marcada por uma série de violações de direitos.
Desse modo, essa pesquisa busca responder a seguinte pergunta central: Em que medida tem sido garantida a mulheres mães e gestantes em prisão domiciliar a reinserção social prevista na Lei 7.210/1984 no estado do Rio Grande do Sul após o Marco Legal da Primeira Infância? As perguntas secundárias que norteiam este estudo são: quais são os desafios da prisão domiciliar na vida de mulheres mães e gestantes no estado? e quais são as demandas de políticas públicas de mulheres mães e gestantes em prisão domiciliar?
Para responder a essas questões, utiliza-se a abordagem interseccional como um instrumento analítico para entender o contexto de mulheres mães, gestantes e responsáveis por crianças ou pessoas com deficiência em prisão domiciliar aliada à pesquisa de campo. A pesquisa será realizada na região metropolitana e vem utilizando três diferentes abordagens: entrevistas (roteiro semiestruturado de perguntas) com mulheres mães e gestantes em prisão domiciliar, aplicação de questionários aos “operadores institucionais” e análise dos dados fornecidos pelo DEPEN e Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul sobre a prisão domiciliar de mães e gestantes a fim de complementar dados.
(*) Vanessa Chiari Gonçalves é professora associada de Direito Penal e Criminologia do Programa de Pós-graduação em Direito e do Departamento de Ciências Penais da UFRGS.
(*) Jessica de Jesus Mota é mestranda em Direito no Programa de Pós-graduação em Direito da UFRGS.