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Cotidiano e a cosmo-história: apontamentos sobre Veena Das e Federico Navarrete

Daniel Ayala Contreras (*) | 31/08/2021 08:30

Em anos recentes, a antropóloga Veena Das tem aportado novas interpretações ao estudo de sujeitos e coletividades atravessados por eventos violentos. Das, que estuda episódios de violência na Índia e no Paquistão e trabalha principalmente com mulheres sobreviventes, empreende a tarefa de tentar compreender a vida cotidiana das localidades em que esses eventos tiveram lugar, ao prestar atenção aos modos de lidar com suas consequências, em particular ao tipo de trauma que a violência imprime no ser; na tentativa de colocar o conhecimento antropológico como receptivo ao problema do sofrimento.

Um dos seus principais aportes se encontra na reflexão a respeito do esforço de recuperação de si mesmo por parte de coletividades e indivíduos que foram vítimas de violência. À pergunta como pode redimir-se a vida para essas pessoas?, ela responde que as vítimas podem apropriar-se do espaço devastado ao invés de escapar dele, reocupando-o em um gesto de luto a partir do seu presente. Nessa reocupação, aponta, os signos da injúria podem ser transformados em maneiras de devir em sujeitos. Para os sobreviventes dos episódios violentos que estuda, a vida foi recuperada através de ações do cotidiano, o que no seu conhecido trabalho Life and words chamou de “descida ao ordinário”.

Para a fortuna dos interessados, em 2020 a Editora da Unifesp publicou pela primeira vez um livro completo em português da autora, Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário, no qual aprofunda esta e outras questões. A obra da antropóloga indiana mostra que encarar as violências que atentam contra a vida mesma, pensando no que as coletividades serão ou deveriam ser no futuro, não necessariamente conduz à recuperação da vida. Ao invés disso, ela destaca as tentativas dos sobreviventes de retomar as tarefas cotidianas de sobreviver, como ter um local para abrigar-se, enviar os filhos à escola e, no geral, realizar o trabalho de todos os dias sem temor. Ela propõe que a criação de si mesmo passa pela construção cuidadosa de uma vida através dos esforços por fazer do cotidiano um espaço mais habitável. Trata-se de um forjar-se a si mesmo no cenário do comum.

Partindo dos seus postulados, tornar habitável o cotidiano é, então, uma maneira de afirmar a existência. Com isso, Das problematiza o impulso teórico de pensar a agência como um escape do ordinário. Nessa preocupação, é possível traçar uma ponte com os postulados recentes do professor, pesquisador e historiador mexicano Federico Navarrete sobre as histórias dos povos indígenas, verdadeiros sobreviventes da violência colonialista, que compõem experiências localizadas em contextos distintos dos estudados por Das, mas fazem eco dos seus aportes.

Embora crítico tanto dos discursos oficiais e acadêmicos sobre a história do México, que identifica como sustentados numa perspectiva racista, Navarrete problematiza a noção da resistência indígena como eixo principal das relações entre as realidades ameríndias e europeias. Esta visão destaca o impacto brutal da colonização europeia mas, ao mesmo tempo, a continuidade das sociedades indígenas e suas formas de vida desde tempos pré-colombianos, no intuito de demonstrar que esses povos são os verdadeiros protagonistas da história da América. Ele argumenta que, na verdade, esses relacionamentos são mais complexos: para compreender sua natureza, propõe partir da premissa de que a história do mundo é a soma das histórias de múltiplos mundos socionaturais, cujas interações não podem ser reduzidas a uma só realidade com uma história única. É o que nos últimos anos vem chamando de cosmo-história.

“Las historias de América y las historias del mundo: una propuesta de cosmohistoria” é um dos artigos nos quais desenvolve essa ideia. Como o título deixa ver, mais que uma teoria bem definida, Navarrete está lançando uma proposta. Colaborador e convidado frequente na USP, no começo do ano 2020 ministrou o curso Cosmo-história: um modo de pensar a história indígena, organizado por Eduardo Natalino dos Santos, coordenador do Centro de Estudos Mesoamericanos e Andinos (Cema) da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Naquela ocasião apresentou, diante de um diverso grupo de pós-graduandos em História, Arqueologia e Antropologia, alguns detalhes de sua proposta, e destacou a importância de dialogar com tradições históricas silenciadas até agora.

No texto mencionado acima, o autor levanta que, após as realidades radicalmente distintas inauguradas pela colonização, as sociedades ameríndias conseguiram sobreviver porque souberam tanto mudar quanto manter suas culturas: em resumo, porque souberam se reinventar. Reconhecer as novas realidades e adaptar-se à situação da violência colonial foi, assim, um dos primeiros passos na reconstrução das suas subjetividades. Isso me lembra da descida ao ordinário apontada por Veena Das, mas com alguns matizes. Para os povos indígenas, recuperar suas histórias foi uma maneira de afirmar sua existência, que os levou não a permanecerem na posição de vítimas, mas, antes, à formulação de imagens do seu passado, à identificação de problemáticas concretas e à busca de soluções para elas. E nesse re-habitar o espaço no seu presente, não esqueceram os anseios pelo seu futuro. O modo com que os kiriris lidaram com a Guerra de Canudos é uma amostra a esse respeito, mas isso já é outra cosmo-história.

(*) Daniel Ayala Contreras é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da USP.

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