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Da comunicação de riscos à coprodução de conhecimento: reflexões e apostas

Gabriela Di Giulio (*) | 27/04/2021 13:30

Na semana em que o mundo ultrapassou mais de três milhões de mortes em decorrência da crise de covid-19, aguardamos, entre apreensivos e ansiosos, as possibilidades de reformulações de políticas ambientais com a realização da Cúpula do Clima, organizada pelo presidente estadunidense Joe Biden, na tentativa de conter outra grave crise global: a climática. No Brasil, as tristes marcas alcançadas elevam nossas preocupações e ansiedades: já registramos mais de 375 mil mortes em decorrência do Sars-CoV-2, e devemos ultrapassar os 14 milhões de casos – números que evidenciam o fracasso do país no combate à covid-19. No que tange à crise climática, o cenário não é menos grave. Análises de pesquisadores brasileiros sobre o Plano Amazônia 2021/2022, apresentado publicamente há poucos dias e que propõe reduzir o desmatamento na Amazônia à média histórica do período 2016-2020, sinalizam que a principal fonte de emissões de gases de efeito estufa no País deve persistir de forma preocupante. Essa observação é agravada ao considerarmos o cenário nacional perturbador diante da crise ambiental, com significativos retrocessos das políticas públicas de proteção ao ambiente e aceleração da perda da vegetação nativa em vários biomas com a expansão de cultivos e pastagens.

Essas breves informações introduzem os desafios desse tempo social que vivemos, marcado por riscos globais, como os associados às mudanças do clima e à pandemia de covid-19, com graves repercussões locais, e que explicitam a complexidade de resposta e capacidade de controle, e a desestabilização das certezas. Como argumentou o sociólogo alemão Ulrick Beck, em suas diversas obras focadas na teoria social do risco, a emergência desses riscos (ou incertezas fabricadas), gerados pelo próprio processo de industrialização, desenvolvimento, efeitos colaterais do projeto de modernidade e do avanço tecnológico, produz situações inéditas. Quando materializadas, estas situações desorganizam de forma multidimensional e bastante severa as rotinas das nossas vidas, e mobilizam diversas questões, inclusive de sobrevivência, as quais não estão a cargo unicamente da ciência, mas perpassam o campo político, com disputas entre diferentes atores, negociações, controvérsias, e demandam a reorientação de valores, de estratégias e uma reorganização do poder e das responsabilidades. Os riscos manufaturados estão na base das crises sistêmicas atuais (como a emergência climática) e agudas (como a pandemia de covid-19) e desvelam, com força, sua capacidade de agravar importantes contradições das nossas sociedades, como acessos desiguais a bens e serviços e garantia de direitos humanos, por exemplo.

Essas crises são resultados de entrelaçamentos de fatores críticos associados ao modelo de exploração predatória dos recursos naturais e ao modelo neoliberalista vigente, que valoriza o crescimento econômico ininterrupto a qualquer custo, acentua a desigualdade e acelera o enfraquecimento de serviços públicos de assistência. Seus impactos, entrelaçados a efeitos de outras crises que marcam o tempo social que vivemos – como a crise das instituições, de confiança e de responsabilidade –, somados a uma cultura do individualismo e da destruição de redes de solidariedade e empatia, agravam o processo de vulnerabilização de grupos sociais em posições desiguais na sociedade (sobre essa discussão ver, por exemplo, Nunes, 2020; Settele et al., 2020; Ventura et al., 2020).

Contudo, há uma aposta, ainda que fragilizada nesse momento de rápida escalada dos efeitos dessas crises, que ao exporem de forma categórica as disputas existentes sobre diferentes concepções de sociedade, modos de vida e modelos de desenvolvimento, e ao desvelarem as conexões fundamentais entre seres humanos e não humanos, estas crises podem catalisar transformações nas relações sociais e impulsionar mudanças sociopolíticas e culturais estruturais. Tais mudanças perpassariam também as interações entre ciência e sociedade e os processos de comunicação desses riscos e de coprodução de conhecimento. Estas últimas, nos parece, constituem a aposta com mais chances de se concretizar.

Riscos, percepções e comunicação

Nas últimas décadas, uma crescente e robusta literatura evidencia a relevância de estudos com enfoque sobre como os indivíduos elaboram suas respostas às dimensões sociais (implícitas ou não) nas suas situações de vida real, como definem os riscos, como se sentem atingidos por eles e como imaginam enfrentá-los. Em comum, essas análises mostram que na seleção dos riscos que consideramos mais relevantes e prioritários, dentro de uma lista de riscos aos quais estamos expostos cotidianamente, nem sempre a evidência científica tem o papel esclarecedor ou é o elemento mais relevante nas nossas decisões. Isso porque essas escolhas são amplamente moldadas por fatores sociais e culturais. Neste processo, para além dos valores e visões de mundo, as relações institucionais, clima social, experiências pessoais, informações, conhecimento, confiança, incertezas e controvérsias são relevantes (Di Giulio et al., 2015).

No caso da crise de covid-19, por exemplo, a forma pela qual os indivíduos compreendem os riscos associados a uma doença nova é largamente mediada pelo conhecimento disponível, pelas formas com que esses conhecimentos são acessados, apreendidos e interpretados, e pela circulação de informações que passam por diversos filtros de amplificação ou atenuação social das ameaças e preocupações. Entre esses filtros estão, por exemplo, posicionamentos dos cientistas, fluxos de informação e como estes são impactados pelas mídias sociais e fake news, discursos de agências governamentais, narrativas e atitudes de atores políticos e econômicos. Pesam também nesse processo as próprias fragilidades na educação científica dos indivíduos, que pode dificultar a compreensão sobre aspectos importantes sobre a doença, suas causas e efeitos; e a combinação perigosa entre o atual fenômeno político do populismo e o negacionismo da ciência.

Não é a toa que em situações de crise e emergência, a comunicação de riscos é reconhecida internacionalmente como um dos principais pilares de resposta. É uma condição fundamental para buscar maior adesão das populações às recomendações das autoridades sanitárias, e maior coesão entre os diferentes atores públicos e privados nas estratégias de enfrentamento. Quando associada à prática de uma comunicação participativa, transparente e aberta, ancorada no pressuposto de que as pessoas afetadas pelas decisões devem não apenas receber informações corretas, contextualizadas, estarem cientes das incertezas que existem, mas também se sentirem parte integrante do processo decisório, a comunicação de risco facilita a integração dos indivíduos na governança do risco e o estabelecimento de uma relação de confiança entre públicos, cientistas e autoridades.

No Brasil, diante da resposta caótica à pandemia, reconhecemos que a falta de coordenação de ações e as inadequadas estratégias de comunicação de risco têm confundido a população, levam à adoção de medidas inapropriadas, amplificam o medo de alguns, enquanto atenuam de forma perversa as preocupações de muitos. Quando há descrédito acerca dos conhecimentos e informações que circulam sobre riscos, em um contexto de incertezas marcado pela desconfiança, com imprecisões sobre atribuições de responsabilidades pelas decisões tomadas, as respostas que emergem podem ser desastrosas, sobretudo numa cultura de individualismo acirrado (Di Giulio et al., 2020).

Se a comunicação de riscos deve estar de forma mais ativa no nosso radar enquanto objeto de análise e atuação, assim deve estar também a necessidade de esforços contínuos para melhorar a comunicação pública da ciência. Importantes iniciativas têm buscado avançar na divulgação reflexiva sobre o conhecimento científico produzido, e sobre as condições e implicações sociais e culturais da Ciência e Tecnologia, na perspectiva de promover diálogos mais aprofundados com a sociedade. Uma delas é a rede Coalizão Ciência e Sociedade, um movimento plural e interdisciplinar, criado no início de 2019, e que reúne cientistas brasileiros com a missão de divulgar informações científicas para subsidiar diálogos sobre temas socioambientais e contribuir com a elaboração e avaliação de políticas públicas. Outra ação de destaque é o USP Talks, que nasceu em 2016 do desejo de aproximar universidade e sociedade, com uma série de palestras de curta duração ministradas por especialistas que abordam, numa linguagem livre de formalidades acadêmicas, temas atuais e de interesse da sociedade.

Se as crises, de um lado, desvelam as limitações das instituições sociais e políticas e da própria ciência em dar respostas, de outro, abrem também uma possível janela de oportunidade para nós, pesquisadores e docentes de universidades e instituições de pesquisa: a busca por novas formas de engajamento entre diferentes atores para viabilizar soluções estruturais e de longo prazo que fomentem a igualdade, a coesão, a justiça social e mudanças transformativas. É com esta perspectiva, por exemplo, que novos editais de pesquisa começam a ganhar impulsão, focados na coprodução de conhecimento, em diálogos teórico-metodológicos com pesquisa-ação, transdisciplinaridade, ciência cidadã, entre outras abordagens.

Em comum, estas iniciativas sinalizam o desafio de promover interações mais próximas e efetivas entre acadêmicos e não acadêmicos a fim de alcançar processos de aprendizado mútuo, conferindo legitimidade a outras narrativas, representações e saberes para além dos científicos, para o avanço do conhecimento. Não há receitas prontas ou manuais a serem seguidos ao pé da letra; contudo, análises de processos de coprodução evidenciam que os esforços de criar e aprimorar interações entre ciência e sociedade têm potencial significativo para promover mudanças transformativas para um futuro mais adaptado e sustentável.

(*) Gabriela Di Giulio é Professora Associada do Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP)

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