Desafios e exigências na jornada de superação do câncer
A psicologia social nos convida a questionar a natureza da linguagem e sua relação com o mundo. As metáforas são uma forma especial dessa linguagem, que nos permitem fazer conexões e traçar paralelos entre diferentes conceitos ou fenômenos, oferecendo uma estrutura narrativa e um senso de significação.
No caso do câncer, elas são frequentemente usadas como ferramenta para transmitir a experiência complexa e desafiadora de lidar com a doença. Ludwig Wittgenstein, um dos filósofos mais influentes do século passado, argumentava que a linguagem é essencialmente um jogo de uso, no qual as palavras e conceitos têm significado dentro de um contexto específico. Nesse sentido, as metáforas podem ser vistas como uma forma de estender esse jogo, permitindo-nos relacionar experiências familiares a conceitos abstratos ou até desconhecidos.
No presente contexto, elas podem exercer várias funções. Em primeiro lugar, fornecer um senso de compreensão e controle sobre um fenômeno “obscuro e assustador”. Ao comparar o tratamento do câncer à “guerra”, por exemplo, as pessoas podem se sentir capacitadas a enfrentar a doença e superar os desafios que ela apresenta, assumindo o papel de um “guerreiro exitoso” que luta sem desfalecer ou de um “soldado” abatido pelo inimigo, na ausência da desejada cura. Em relação a este último, é importante perceber que as metáforas têm limitações.
Enquanto no primeiro exemplo mostram-se úteis para a compreensão e o engajamento emocional, no segundo, são capazes de criar o estigma de que aqueles que não “vencem a luta” são fracos ou falharam de alguma forma.
Lembremos que cada pessoa vivencia a doença de maneira única, e as metáforas não conseguem capturar completamente essa diversidade de experiências. Portanto, uma análise crítica psicossocial implica reconhecer o poder que elas têm para comunicar e moldar nossa compreensão acerca da enfermidade, mas também, a necessidade do cuidado com seu uso indiscriminado. É importante estar ciente de que as metáforas são apenas uma forma de nos aproximarmos à realidade complexa da doença, e que cada indivíduo tem uma trajetória singular que vai além de qualquer metáfora específica.
É bastante comum no meio biomédico o uso da antiga frase “vencer o câncer”. Ela traz consigo o estigma de que o “sucesso” é uma questão de perseverança, determinação e força de vontade que envolve, além do paciente, o apoio e o cuidado dos profissionais de saúde, familiares, amigos e a comunidade em geral. Embora a participação de todos esses atores seja relevante, “vencer o câncer” traz implícito o conceito de que a recuperação “total” é a única forma de sucesso, quando, na verdade, muitos pacientes podem enfrentar recaídas ou viver com a doença por longos períodos de tempo.
O câncer é considerado uma doença crônica não transmissível, como o diabetes e a hipertensão arterial, por exemplo, e na abordagem de nenhuma delas somos tão intransigentes e enfáticos. O tratamento deve ser visto não apenas como uma “luta”, mas como uma jornada clínica, emocional e psicológica que exige o envolvimento de uma equipe multidisciplinar de cuidados e resiliência para fornecer o melhor suporte possível.
Embora “vencer o câncer” continue sendo utilizado, esperamos que em um futuro não distante, seja visto desde uma perspectiva mais humanizada e holística, que reconheça a unicidade e complexidade da experiência do paciente com a enfermidade, de sua família e do contexto social presente.
Que outros conceitos como “viver com câncer” sejam também incluídos, uma vez que a doença pode ser vista como algo que o paciente deve aprender: “viver com”, em vez de algo que deve ser necessariamente “combatido” ou “vencido”. Isso sugere que o câncer é uma parte da existência humana e que é possível ter uma vida significativa e feliz, apesar dele.
(*) Eduardo Blanco Cardoso é pós-doutorando de Psicologia.
(*) Elisa Maria Parahyba Campos é professora do Instituto de Psicologia da USP.