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Do bom senso e da estultícia

Por Jean Chauvin e Marcelo Lachat (*) | 21/06/2019 13:20

“Ei-los [os poemas] sós e mudos, em estado de dicionário”

(Carlos Drummond de Andrade)[1].

“Em situação de poço, a água equivale/a uma palavra em situação dicionária”

(João Cabral de Melo Neto)[2].

“Embora os homens costumem ferir a minha reputação e eu saiba muito bem quanto o meu nome soa mal aos ouvidos dos mais tolos, orgulho-me de vos dizer que esta Loucura, sim, esta Loucura que estais vendo é a única capaz de alegrar os deuses e os mortais”

(Erasmo de Roterdã)[3].

A senhora, o senhor internauta terão vivenciado a experiência de realizar teste vocacional, quando estavam no ensino médio? Em caso afirmativo, poder-me-iam descrever que tal é o procedimento que averigua o grau de (des)encaixe de crianças ou adolescentes em padrões estimados pelo mundo corporativo, artístico, desportista, científico ou acadêmico?

A questão pode soar controversa, mas o que sabemos de nós aos 16, 17 anos? Talvez tenhamos noção exagerada (para mais, para menos) de nossa participação no mundo. Porventura tenhamos alguma e vaga ideia de nossa condição socioeconômica, para baixo, na média, ou para mais alto. Será possível estipular uma ou mais carreiras a seguir, áreas de atuação, em acordo com perfis pré-construídos?

O que entendemos, nós, do universo, ou da ínfima parcela de saberes que supomos dominar, quando adultos? Com exceção dos casos raros, das mentes superdotadas, das almas hipersensíveis, seria menos decepcionante e mais realista supor que estejamos com um pé em cada faixa, digamos, dentro dos limites da mediocridade saudável, a especular conforme o maior (ou menor) repertório a que tivemos acesso e de que tiramos algum proveito.

O poeta advertira: “Penetra surdamente o reino das palavras”[4]. Outro versejador sugeriu que “no idioma pedra se fala doloroso”[5]. Se não o entende, consulte quem compreenda o que a língua diz e sugere. Se preferir, vá direto ao dicionário (catálogo de palavras) ou, para ganhar tempo a cultivar maior tédio, consulte o aplicativo instalado em seu gadget.

Isso porque vai uma grande diferença entre achar, opinar, refletir, argumentar e (tão pouco) saber. Para termos uma noção disso, basta ler as postagens empolgadas deixadas por leitores de instantâneos, sem paciência para consumir textos extensos, com mais de 140 caracteres.

Fragmento contra argumento. É senão considerável dar ouvidos e gastar a retina com gente que amaldiçoa homens que desconhece, livros que não leu; condena frases cujo sentido inverte e moraliza experiências que sequer viveu (cá estão dois pares de rimas, a sinalizar para outro aspecto subestimado das palavras).

Em tese, o Senso Comum afirmaria que ideias não se confundem com dogmas. A seu turno, o Bom Senso suporia sermos capazes, racionais que somos, de rever nossa concepção de mundo.

Quanto à Má-Fé, deixou os desvãos da autocensura e estendeu as mãos (e os pés) à ignorância, fingindo convicção. Embrutecidas, uma e outra reivindicam luz própria e, na falta dela, a máxima luminescência dos holofotes, a conferir maior brilho onde reina a falta de clareza e campeia a confusão entre cultura, tradição e conservadorismo.

Isso explicaria a palavra que manda, o dedo em riste, a desfaçatez, o pré-julgamento, a convicção imutável, o nacionalismo entreguista, a xenofobia, a negação da alteridade, a interdição das vozes, a celebração da morte, o aniquilamento como valor, a predisposição para a violência como virtude?

Afinal, quem tutela a Má-Fé? Talvez possamos responsabilizar a Estultícia. É o que sugere a avalanche cumulativa de discursos e atitudes, intencionalmente calcados no benefício de poucos e no prejuízo de muitos. Ou alguém terá coragem, em pleno juízo de suas faculdades, de negar o ambiente hostil que transformou grande parte de nossos conterrâneos em fratricidas, assanhados por enfrentar as desigualdades todas com o dedo a postos, a engatilhar o mais novo brinquedo de fogo – quem sabe, um fuzil parcelado em dezenas de vezes, mirado contra si mesmo?

Vivemos tempos distópicos de elogios à loucura. Por isso, anacronismos à parte, não há como não nos lembrarmos do Elogio da Loucura de Erasmo de Roterdã (1466-1536), que dedica a obra ao seu amigo Thomas More (1478-1535), autor da célebre Utopia:

“Achando-me, dias atrás, de regresso da Itália à Inglaterra, a fim de não gastar todo o tempo da viagem em insípidas fábulas, preferi recrear-me, ora volvendo o espírito aos nossos comuns estudos, ora recordando os doutíssimos e ao mesmo tempo dulcíssimos amigos que deixara ao partir. E foste tu, meu caro More, o primeiro a aparecer aos meus olhos, pois que malgrado tanta distância, eu via e falava contigo com o mesmo prazer que costumava ter em tua presença e que juro não ter experimentado maior em minha vida. Não desejando, naquele intervalo, passar por indolente, e não me parecendo as circunstâncias adequadas aos pensamentos sérios, julguei conveniente divertir-me com um elogio da Loucura. Por que essa inspiração? — perguntar-me-ás. Pelo seguinte: a princípio, dominou-me essa fantasia por causa do teu gentil sobrenome, tão parecido com a Moria quanto realmente estás longe dela e, decerto, ainda mais longe do conceito que em geral dela se faz”[6].

Assim, Erasmo explicita as circunstâncias da concepção de seu irônico Encômio da Loucura ou Elogio da Estultícia (o título original da obra, em latim, é Moriae Encomium id est Stultitiae Laus) em uma também irônica dedicatória a Thomas More, cujo sobrenome, embora parecido com a Moria grega, indica a qualidade inversa, ou seja, a sabedoria.

Porém, na distopia que enfrentamos hoje, os encômios à tolice e à ignorância são irônicos sem o saber: em aramaico, Mexīhā é o ungido; em grego, Moria é a loucura ou a estultícia; e, em português, a ironia do presente é etimológica. Vivenciamos, enfim, a distopia dos tolos que não se sabem tolos, e elogiam estultos que ignoram a própria ignorância.

(*) Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e Literatura Brasileira na ECA-USP e Marcelo Lachat é professor do Departamento de Letras da Unifesp.

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