Educação e política: notas psicanalíticas
“Estudar é coisa de vadia!” Essa foi a frase que uma mulher, durante anos, escutou do cônjuge nas ocasiões em que escolhia dar voz a um grande sonho. Essa mulher, mãe, negra e moradora da periferia, ao se encorajar e decidir colocar um fim nessa relação que pertence ao domínio da vida privada, é a mesma mulher que, atualmente, integra e mobiliza um Coletivo de Mulheres de uma região atravessada de forma insidiosa pela violência urbana e institucional na cidade de Porto Alegre. Trata-se de um Coletivo que trabalha para implementar políticas de vida, como acolhimento, visibilidade, solidariedade, segurança, cultura, lazer e geração de renda nesse território há muito tempo abandonado pelo Estado.
Na tentativa de resistir a uma política estatal de precarização que, de acordo com a filósofa Judith Butler, fomenta um processo de adaptação e conformismo à insegurança e à desesperança de determinadas populações, nos interessa destacar a forte recusa dessas mulheres de entregar os seus futuros e os de suas crianças às mãos do tráfico de drogas e para a miséria de uma vida invisível.
Dessa maneira, testemunhamos no trabalho e na ação desse Coletivo uma insistente aposta no desejo que encoraja o sonho de um futuro diferente.
Segundo a filósofa Hannah Arendt, o campo da educação constitui dois importantes fatos, a saber, o da natalidade e o da transmissão. Quanto à natalidade, nos interessa compartilhar que a espécie humana nasce duas vezes: primeiro ela nasce no mundo, nascimento que condiz com a entrada do filhote humano na vida privada (família), e em um outro momento ela nasce para o mundo, nascimento que corrobora a entrada do sujeito na vida pública (pólis). De modo geral, isso significa que conquistar um lugar de palavra e visibilidade fora do meio familiar e dentro do campo social não nos está garantido de antemão nem acontece de modo definido, o que revela a necessidade de que cada sujeito se engaje no importante trabalho psíquico de fundar um lugar para si, o que não se faz sem a presença de outros.
A noção de Outro/outros para a psicanálise é ampla e complexa; ressaltamos, contudo, a sua importância em termos de constituição do sujeito e de reconhecimento da alteridade e da diferença. O outro não é, ou ao menos não deveria ser, um igual. No que tange à educação ser um (f)ato de transmissão, é a outra geração, a mais velha, que tem o compromisso de apresentar às novas gerações esse mundo que já existia antes do seu nascimento. Ato que ao mesmo tempo inscreve continuidade e abertura ao mundo humano: primeiro porque insere as novas gerações numa história em curso e segundo porque permite a criação de espaços para o surgimento de algo novo que irrompa sobre o velho.
Nesse sentido, ascender a um lugar de visibilidade e palavra no espaço público passa pelo engajamento de cada um e de todos em fazer surgir algo novo capaz de abalar as estruturas de pensamento político e social de uma determinada sociedade.
Esse é o inerente desafio da espécie humana que se renova a cada geração e recai sobre cada sujeito e cada comunidade e não incorre numa deriva conformista com relação aos imperativos discursivos que governam uma época. É por isso que, ante princípios que sustentam o individualismo, a violência e o gozo desmedido, bem como a intolerância ao outro-diferente e as políticas de morte, a psicanálise aposta em uma ética do comum, uma ética que trabalha contra lógicas de guerras e lógicas totalitárias, ética implicada em manter aberto um lugar para o outro e para o novo, sem o qual a condição de uma vida desejante se paralisa.
A ética que a psicanálise sustenta está relacionada ao ato e a uma posição de um sujeito ou um Coletivo para, de acordo com Jacques Lacan, estabelecer um lugar no discurso e no laço social. Em outros termos, isso significa estabelecer um lugar de visibilidade e palavra para que seja possível lutar por um futuro diferente para as novas gerações. Nesse sentido, estudar é esperançar. Esperança essa que, como propõe Ernst Bloch, deve ser ativa e revolucionária. É poder sonhar e de fato vir a ocupar um futuro, sem deixar que este fique capturado pela barbárie e pelo esvaziamento simbólico, de modo a tornar o tempo futuro um lugar inabitável para alguns. Mais que um instrumento político, a educação precisa ser reconhecida desde o seu valor e sentido existencial, sem o qual não haverá transformação e vida conjunta possível.
(*) Flávia Tridapalli Buechler é mestranda do PPG de Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação & Cultura (NUPPEC) – Eixo 3: Psicanálise, Educação, Intervenções Sociopolíticas e Teoria Crítica.
(*) Cláudia Maria Perrone é professora doutora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia e do PPG Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS. Coordenadora do NUPPEC – Eixo 3.
(*) Gabriela Gomes da Silva é mestranda do PPG de Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS e pesquisadora do NUPPEC – Eixo 3.
(*) Juliana Martins Costa Rancich é mestranda do PPG de Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS e pesquisadora do NUPPEC – Eixo 3.