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Educação infantil e pandemia

Gabriel de Andrade Junqueira Filho (*) | 21/12/2021 08:30

Uma dimensão significativa da relação entre família e escola de educação infantil ganhou contornos mais evidentes com a devastação causada pela pandemia de covid-19, qual seja, a tendência, ainda que não objetiva e intencional, de transferir, em lugar de compartilhar, os cuidados e a educação das crianças da primeira infância para a escola.

Encoberta pelas características da vida cotidiana contemporânea pré-pandemia, sobretudo pela sobrecarga das demandas de trabalho dos pais, pelas lutas por emancipação e conquistas de direitos pelas mulheres e, consequentemente, mas inversamente proporcional, pela lenta readequação do contrato social entre homens e mulheres no que diz respeito aos cuidados e à educação dos filhos do casal, acabou por revelar-se sem nenhuma camuflagem, fragilizando ainda mais a escola, as famílias e as crianças. Já era sabida, pontuada pela escola, acolhida com constrangimento e reconhecimento por grande parte das famílias de todas as conformações, mas descuidada, adiada, sob pretexto de outra devastação: a provocada pelas características da vida cotidiana contemporânea, principalmente nas grandes cidades do planeta – competitiva, imediatista, apressada, controladora, consumista, estressante.

Num quadro em que pais culpados e exaustos encontram seus filhos apenas no início e ao final do dia, cinco dias na semana, acabam por negligenciar com as crianças o sentido da aprendizagem e a relação com a rotina, a autonomia, as regras, os combinados, os limites, cuja construção e acompanhamento exigem tempo, energia e presença.

A negligência se repete diante das dimensões mais lúdicas dessa relação parental, como brincar, contar histórias, ver filmes e conversar a respeito, cantar e dançar, preparar algo para comer com a participação das crianças, passear, conversar com elas sobre assuntos aleatórios ou recorrentes pelos quais demonstram interesse.

A escola, por sua vez, foi desafiada a traduzir o seu projeto político-pedagógico a distância, para se fazer presente no isolamento das casas e rotinas das crianças e suas famílias. Mais do que nunca, precisou da ajuda e da participação dos pais ou responsáveis pelas crianças. Teve como resposta acolhimento, disponibilidade e cooperação por um lado; constrangimento, críticas e demandas surpreendentes por outro; além, não raro, de providenciar emergencialmente necessidades essenciais às famílias de baixa renda ou que ficaram desempregadas, como cestas básicas, máscaras e material escolar.

As demandas dos pais chegaram, basicamente, em duas direções: por um lado, revelando desconhecimento e/ou descompasso em relação ao projeto político-pedagógico da escola, com pedidos de envio de tarefas relacionadas ao ensino de conteúdos, como classificação, associação da grafia dos números às quantidades equivalentes, contagem e récita numérica, realização de situações-problema envolvendo quantidades, associação de letras iniciais de palavras a figuras, leitura e escrita de palavras e frases curtas, de modo a manter as crianças ocupadas e com as responsabilidades demandadas pela escola, liberando-as para as demandas de seus respectivos trabalhos e à manutenção e aos cuidados com a rotina da casa; por outro, com pedidos de ajuda para a abordagem de assuntos inevitáveis ou de interesse das crianças e também para o manejo de comportamentos das crianças para os quais não se sentiam preparados, como questões relativas a medos diversos (escuro, monstros, barulhos altos, pesadelos), questões de gênero, sexualidade das crianças e dos pais, doença prolongada ou morte de familiar ou de alguém do círculo de amizades, mudança de cidade, desemprego ou separação dos pais. A escola foi redescoberta e valorizada na sua função social.

Conciliar dedicação ao trabalho e aos cuidados e educação dos filhos, em meio a outras tantas dimensões da vida cotidiana, é um desafio criativo e nada solitário. O compartilhamento com a escola é uma via legal, uma vez que a educação básica é um direito das crianças e das famílias e obrigatória a partir dos quatro anos de idade. Mas o que a pandemia nos revela vai além, interroga toda a sociedade e pede a revisão dos contratos sociais, para que o nascimento de uma criança não seja apenas mais um sintoma irrefreável da sociedade de consumo e sua educação um consequente fracasso da sociedade do cansaço em que vivemos.

(*) Gabriel de Andrade Junqueira Filho é professor do Departamento de Estudos Especializados (Faced).

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