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Ensaio sobre nossa cegueira climática

Andreas K. Gombert (*) | 20/09/2022 09:00

Queria argumentar aqui que o comportamento (ou a postura) do ser humano frente à emergência climática que estamos vivendo não é diferente do nosso comportamento diante de outras situações, desde questões cotidianas, até grandes decisões individuais e coletivas que somos desafiados a tomar em alguns momentos chave de nossas vidas. Há um ditado popular que, em minha opinião, reflete de maneira bastante precisa o modus operandi do ser humano: “Faça o que eu falo, mas não faça o que eu faço”. Além desse ditado, duas expressões populares muito usadas e que permearão este texto são “olhar para o próprio umbigo” e “não enxergar além do nariz”. Há variações dessas expressões, não são idênticas, mas uma se assemelha à outra.

Nós temos o hábito de enxergar o mundo sob a perspectiva do tempo de vida de uma pessoa, digamos uns 80 anos, em uma visão otimista. Ou seja, aquilo que dura uns 80 anos é algo que consideramos, talvez no nosso subconsciente, um processo longo. No entanto, a evolução da nossa espécie vem ocorrendo ao longo de pelo menos 200 mil anos, conforme acreditam os cientistas, tomando aqui um número mínimo. Durante esse período, que é 2500 vezes maior do que 80 anos e que representa muito mais do que 2500 gerações, já que a idade reprodutiva dos humanos é bem menor do que 80 anos, vivemos sob pressões seletivas que nos forçaram a agir protegendo nosso grupo, confrontando (ou até mesmo guerreando com) outros grupos de indivíduos. Até mesmo dentro de um grupo sempre houve disputa de poder, por exemplo, para definir quem seria o líder. Fica claro então que nós evoluímos por dezenas de milhares de anos num mundo de constante combate entre os seres humanos, e aqueles que melhor se adaptaram, tiveram uma prole maior e transmitiram seus genes de maneira mais eficiente do que aqueles que, por algum motivo, não souberam agir dentro das pressões seletivas existentes. Assim foi moldada nossa biologia.

E vale a pena lembrar que, há menos de meros 100 anos, vivemos a II Guerra Mundial e que, hoje, dezenas de conflitos armados estão ocorrendo no nosso planeta. Guerras e conflitos não são, de maneira nenhuma, coisa do passado. Essa nossa “biologia” é muito forte! Em outras palavras, somos animais como os outros, apesar de negarmos isso e de termos perdido a grande conexão que tínhamos com a natureza.

Mas podemos achar que a maioria dos seres humanos é contra a guerra ou ao menos se manifesta contrariamente a essas práticas (“Faça o que eu falo”?). Na sequência da II Guerra Mundial, vários países se uniram para criar a Organização das Nações Unidas (ONU), e logo depois foi promulgada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. Ao lermos esse documento, ficamos emocionados com a beleza das palavras e das intenções ali contidas. Lembra-me de outro ditado: “De boas intenções o mundo está cheio.” Ao mesmo tempo, a realidade do mundo de hoje não poderia estar mais distante daquele texto. “Teoria é uma coisa e prática é outra”? Talvez seja uma questão de tempo o mundo atingir, na prática, o conteúdo da Declaração. De todo modo, em algum momento, tínhamos que colocar aquilo no papel, quanto antes melhor.

As ações humanas têm mesmo uma inércia ou requerem uma preparação psicológica universal. Será? Mas talvez seres extraterrestres (se é que eles existem) que um dia aqui cheguem, num momento em que o planeta estará vivo e cheio de vida, mas sem seres humanos (sim, pois é isso o que ocorrerá se a emergência climática não for devidamente enfrentada), encontrem a Declaração, interpretem nossa escrita e se emocionem (caso eles tenham sentimentos).

A distância entre o que está escrito na Declaração e a realidade do mundo em que vivemos decorre em grande parte, se não exclusivamente, do fato de que cada ser humano se coloca sempre acima de outro ser humano. Muitos de nós não conseguimos sentir um mínimo de empatia por quem vive em condições que denominamos subumanas, muitos sequer se lembram dessas pessoas. É verdade, alguns se importam. No entanto, pouquíssimos são aqueles que de fato levam a vida procurando fazer algo para que essas pessoas possam viver melhor. E qualquer um que leu a reflexão de Camus em “A Queda” fica na dúvida sobre as verdadeiras intenções de pessoas a quem chamamos de altruístas, boas, empáticas ou caridosas (“Os meios justificam os fins”?).

Por que então esperamos que, perante a emergência climática, nossa atitude seja diferente? Parece-me que estamos apenas sendo coerentes com nossa “biologia”, essa é a realidade. Como em qualquer dificuldade histórica, são os mais pobres e vulneráveis os mais prejudicados. Quem já sofre é quem irá sofrer mais ainda. A temperatura subiu? Quem tem dinheiro compra um novo aparelho de ar-condicionado, deixando seu ambiente mais fresco e contribuindo para piorar a situação geral. A água acabou? Quem tem dinheiro fura um poço, resolve seu problema particular, piorando a situação geral. Não conseguimos enxergar além. A emergência climática expõe a “biologia” humana de forma escancarada. E o capitalismo, sistema econômico social que inventamos há alguns séculos, atrapalha, pois é quase antagônico à lógica de enfrentamento da emergência climática. Não sei se podemos dizer que “o capitalismo é o pior dos sistemas, à exceção de todos os outros”, alterando um pouco uma frase conhecida, mas está mais do que na hora de reinventarmos nossas sociedades, mudando a forma como o mundo funciona.

Existe saída? Acredito que sim, mas precisamos de ações vindas de dois lados. De cima para baixo, precisamos de governos fortes, mas sem soberba (será possível?), para frear a lógica neoliberal, que visa ao lucro e nada mais. De baixo para cima, cada pessoa, ao menos aquelas que não vivem na situação de estarem constantemente preocupadas com a próxima refeição (ou com a própria sobrevivência), precisa contribuir com as pequenas ações do dia-a-dia e colocar esse propósito na cabeça (o ser humano precisa de propósitos para preencher sua existência, e esse seria um propósito excelente!). E quem sabe a emergência climática não será a força motriz para essa mudança? Na minha visão, temos duas opções: seguir esse caminho ou dirigirmo-nos à extinção do chamado Homo sapiens. O planeta Terra sobreviverá.

(*) Andreas K. Gombert é pesquisador do Laboratório de Engenharia Metabólica e Bioprocessos, da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) Unicamp. Traduziu o livro "A ascensão da levedura: como um simples fungo moldou nossa civilização", publicado pela Editora Unicamp.

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