Ensino remoto emergencial: questões éticas
Ante a realidade da crise sanitária provocada pela covid-19, pandemia de efeitos letais e alcance planetário, a educação foi empurrada, ainda mais, para a condição de direito não assegurado a todos, devido à necessidade de distanciamento social para a proteção da vida. Como em muitas atividades laborais, as escolares passaram a ser realizadas de modo remoto, única via possível para mitigar danos. Porém, desde cedo, mostrou-se inacessível a amplas parcelas da população dos/as estudantes e irrealizável a muitas redes de ensino.
O impacto da ausência de garantia do direito à educação é imensurável. A precariedade das políticas públicas comprometidas com o enfrentamento da pandemia e, especialmente, a falta de políticas educacionais que assegurem o direito de todos/as à educação escolar geram a falsa ideia de que existe uma “normalidade”. Conforme pesquisa realizada no Brasil em fins de 2020, 24% dos entrevistados (entre 6 e 34 anos) deixaram de frequentar a escola por problemas financeiros, 20% por dificuldades em lidar com o ensino remoto e 22% em função da interrupção das aulas. Quanto às/aos estudantes universitários/as, a pesquisa informa que 16,3% interromperam seus estudos em 2020.
Na atual conjuntura, o boicote do governo federal em relação a compromissos históricos e políticas de Estado voltados à defesa da educação pública e da pesquisa científica torna a situação ainda mais difícil. A chegada da pandemia num cenário de fortes, interessados e desleais ataques à escola pública, acusando-a, entre outras barbaridades, de propagar a chamada “ideologia de gênero”, facilita a tarefa de, propositalmente, confundir o ensino remoto emergencial (ERE) com ensino domiciliar, imaginando estarem dadas as condições necessárias para a mudança na legislação educacional. E se, por um lado, até o momento da escrita deste texto isso não ocorreu, por outro é perceptível a simpatia nutrida mesmo por determinados setores da universidade pela adoção da EaD em definitivo para as chamadas disciplinas teóricas.
Ensino remoto e acesso emergencial ao conhecimento
A organização de atividades por meio de estratégias digitais, em um país em que 26% da população não é usuária de internet, sendo que, dentre aqueles/as que a acessam, 58% utilizam-se exclusivamente de aparelho celular e apenas 40% têm o costume de utilizá-la para fins de estudo e pesquisa, explicita alguns dos elementos fundamentais pelos quais o ensino remoto emergencial (ERE) não tem sido suficiente. Este é o quadro: sem política de segurança sanitária, sem plano de contingência que estabeleça diretrizes para a Educação, sem acesso universal e gratuito à banda larga, sem costume de utilizar a internet para estudo e pesquisa, profissionais da educação têm sido lançados/as a um conjunto de interações digitais, que não se constituem em ensino a distância, mas buscam garantir acesso emergencial ao conhecimento. Tal situação produziu a necessidade de uma reflexão, por parte dos docentes, acerca dos aspectos éticos implicados no ERE. Aspectos, antes inusitados, introduzidos pela dinâmica virtual, exigiram ser compreendidos, menos em sua dimensão normativa ou meramente punitivista, e mais nas pedagógica e formativa, ditadas pela corresponsabilidade entre os/as agentes envolvidos.
Em que pese a existência de macrorreferências gerais ligadas ao uso da internet, elas não têm respondido diretamente ao conjunto de questões nascidas do cotidiano das interações remotas. Desde o início das atividades na pandemia, ocorrências diversas nos encontros remotos (solicitação de gravação dos encontros, questionamentos sobre uso de imagem, acesso de pessoas estranhas, provocações de cunho ideológico, sexual etc.), para as quais não existem respostas prontas, têm acontecido. Inicialmente, as conversas entre docentes indicavam expectativas de que a solução viesse de fora, com as instâncias da administração garantindo não só a segurança de estudantes e docentes no uso das ferramentas digitais, mas também a preservação dos direitos sobre os conteúdos produzidos.
Na sequência do diálogo instaurado, foi possível retomar o sentido educativo das preocupações, com o reconhecimento da necessidade de se discutir a responsabilidade de docentes e estudantes diante das interações virtuais, indo além da busca por medidas repressivas ou administrativas, explicitando o caráter educativo das relações nesses novos ambientes e suas implicações éticas. Assim, as demandas marcadas pela tendência de busca por soluções externas, e que pudessem garantir segurança, deslocaram-se para a convicção de que não existe interação remota segura, tampouco providência administrativa suficiente, porque a questão é, antes de tudo, pedagógica.
Aumentar a frequência de reuniões com docentes, educadores e estudantes, bem como convidar pesquisadores/as que atuam no campo do ensino remoto, têm sido necessários para a produção dos pactos educativos exigidos pelo contexto, reconhecendo situações já vivenciadas em atividades presenciais (como invasões de sala de aula, presença de estudantes sem participação) e que adquiriram outro caráter no mundo virtual. Discutir aspectos éticos obriga a considerar cada situação, relacionando-a à finalidade da formação, que implica rejeitar a ideia simplista de que se opera aqui a conversão de cursos presenciais na modalidade educação a distância (EaD), tendo em vista as enormes diferenças, conceituais e práticas, entre EaD e ERE. Mais que isso, não houve deliberação antecipada, planejamento ou decisão de conversão da modalidade presencial para a remota. Houve, outrossim, produção de alguns possíveis diante da ausência de qualquer plano de contingência. E tal esforço por parte de educadores/as não pode ser distorcido em adesão à EaD ou sequer ao chamado ensino híbrido. As tentativas de uso do terrível contexto vivido para fazer avançar o projeto de redução e/ou extinção de disciplinas e cursos presenciais sob o pretexto de que “o mundo não será mais o mesmo” configuram-se como aproveitamento cínico da necropolítica vigente.
Cuidados éticos no ensino remoto emergencial
Neste contexto, revelou-se fundamental a criação de um Grupo de Apoio às Estratégias Digitais (Gaed) na Faculdade de Educação da USP, formado por docentes, estudantes, educadora e trabalhador técnico-administrativo, responsável por organizar a oferta de atividades sistemáticas, plantões de dúvidas e repositórios de informações sobre tecnologia da informação e comunicação na educação. Apesar da tendência corrente de empregar as estratégias digitais como recurso técnico com vistas a uniformizar o currículo, centralizando a definição de objetivos, conteúdos e instrumentos de avaliação, o que se advoga é a garantia do acesso às experiências formativas, com a exploração das alternativas de interação professor-aluno-conhecimento, propiciadas pelos meios digitais. Isso requer a ruptura com a lógica instaurada pelo neotecnicismo educacional, envernizado pelo discurso das “inovações” ou metodologias ativas, que distancia docentes e estudantes, posicionando os/as primeiros/as como produtores (e muitas vezes aplicadores) dos chamados objetos educacionais – basicamente vídeos e textos publicados em plataformas digitais – e os/as segundos/as como meros/as consumidores/as.
Da mesma forma, as estratégias remotas não podem ser mera transposição do encontro presencial para o encontro síncrono virtual. Há diferentes condições de acesso; há características específicas de tempo, concentração, organização e sequência nas atividades pedagógicas mediadas por meios tecnológicos de comunicação a distância; há também restrições na interação estudante-estudante e docente-estudante. Em acréscimo, a realização de atividades remotas pode implicar exposição de aspectos da vida de cada pessoa envolvida, por exemplo: condições de habitação, intimidade familiar/pessoal, imagens e interações de crianças e adolescentes, animais. Tais aspectos precisam ser alvo de discussão, compondo o contrato pedagógico firmado no início das disciplinas, tal como a discussão sobre as dimensões de racismo, machismo, LGBTfobia, capacitismo e preconceito de classe que constituem nossa sociedade, que podem emergir no curso de atividades digitais síncronas ou assíncronas, devendo ser consideradas como bons motivos para que as pessoas mantenham suas câmeras desligadas durante as atividades digitais. E, mesmo quando discutimos aspectos de burla (simular estar presente à aula, fazer mais de uma disciplina no mesmo horário, matricular-se em horário de trabalho, pressionar o/a docente para gravar as aulas), é preciso ler a produção dessas formas de existir na instituição a partir do contexto em que vivemos, no qual a educação se esvazia de sentido ético e é corroída por um projeto político que postula sua pura instrumentalidade.
Outra questão relevante é a divergência entre defensores e contrários à disponibilização das gravações das atividades síncronas para estudantes que não puderam acompanhá-las. Pesam, a favor, as dificuldades impostas pelo isolamento social, com consequências para a organização da rotina familiar, desde a falta de equipamentos, horários em que há que se cuidar de crianças e pessoas idosas, compromissos profissionais etc. As justificativas em contrário também são legítimas e variadas. As atividades síncronas certamente perdem uma parcela de sua potência se desprovidas de diálogo. É o que acontece, como já indicamos, se forem simplesmente “assistidas”, num momento posterior. Além do inquestionável risco da exposição indevida, caso o vídeo venha a cair em mãos de pessoas mal-intencionadas, com iminente probabilidade de edição e utilização das imagens e frases fora de contexto, o que pode representar um perigo à reputação do/a professor/a, dos/as estudantes e do curso, arrefecido pelo clima persecutório instalado nas redes sociais.
Sendo assim, e assumindo que nem todas/os as/os estudantes têm condições de acompanhar as atividades síncronas, é preciso conceber estratégias de acesso que não ignorem o direito de qualquer pessoa negar a gravação e/ou reprodução de sua imagem, sem que isso signifique qualquer tipo de prejuízo de acesso ao currículo. É fundamental, portanto, elaborar e avaliar coletivamente a função das gravações, em vídeo e/ou áudio, como parte das estratégias didáticas que comporão a disciplina, de modo que se grave apenas quando houver justificativa pedagógica explícita para tal. É possível, por exemplo, gravar apenas a parte expositiva da atividade, preservando o acesso assíncrono à apresentação da/o docente (ainda que haja o prejuízo da não gravação das discussões/interações ocorridas durante a aula síncrona), ou disponibilizar arquivos nos ambientes virtuais de aprendizagem acessíveis apenas a estudantes da disciplina, de maneira que sejam visualizados sem que possam ser baixados e/ou editados.
De fato, em 2021, mais familiarizados com os recursos tecnológicos, passamos a utilizá-los com alguma proficiência. Antes, buscávamos salvar os/as náufragos/as; agora, esperamos que cada um/a já tenha um bote. Ao mesmo tempo, o cansaço aumenta, as mortes estão mais próximas, o desemprego cresce e as perspectivas de retomada da formação presencial continuam vagas. Ainda assim (ou precisamente por isso) a responsabilidade por levar a bom termo o enfrentamento da situação anômala que experimentamos precisa continuar a ser compartilhada entre docentes, estudantes e funcionários/as técnicos/as e administrativos/as. Uma responsabilidade ciente do caráter emergencial da conjuntura, por mais que ela se estenda no tempo, e da natureza pedagógica das questões éticas que enfrentamos ao lidar com ela. Um cenário que, ao nos colocar diante de recorrentes situações-limite, exige uma pedagogia também emergencial, consciente de ser provisória e passageira, mas também de ser necessária e indispensável para que alcancemos a outra margem que, esperançosos/as, não abdicamos de buscar.
(*) Carla Biancha Angelucci é professora da Faculdade de Educação da USP. Participaram da construção desse artigo os professores Marcos Garcia Neira, Marcos Sidnei Pagotto-Euzebio, Rosenilton de Oliveira, Rosângela Gavioli Prieto e Vinício de Macedo Santos .