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Falta de transparência do setor bancário na oferta de crédito consignado

Luca Schiewe, Ione Amorim, Julia Catão Dias e Fábio Machado Pasin (*) | 23/09/2022 08:30

No início de agosto, o Governo Federal sancionou a lei 14.431/2022, que aprova a concessão de crédito consignado sobre o Auxílio Brasil. A medida pode contribuir para a piora da vida de milhões de brasileiros, uma vez que autoriza a retenção de parte significativa do benefício para pagamento das parcelas cobradas pelas instituições financeiras.

O Idec, que há anos acompanha as problemáticas que envolvem a oferta e concessão do crédito consignado, vê a medida em extrema preocupação e cobra respostas do poder público e das instituições financeiras por meio de um posicionamento público que foi assinado por mais de 20 mil brasileiras e brasileiros.

Os bancos nacionais, diante dos debates sobre o tema, se posicionaram de diferentes maneiras: algumas das maiores instituições financeiras anunciaram que não vão oferecer o crédito, outras não se posicionaram e há ainda aquelas que já se cadastraram para operar o consignado no benefício. Apesar das diferentes posições, um levantamento produzido pelo Idec e apresentado neste artigo, evidencia que mesmo as instituições financeiras que deram declarações públicas no sentido de não oferecer o crédito, poderão fazê-lo por meio de suas subsidiárias, correspondentes bancários ou, ainda, por meio de bancos nos quais investem.

Tais práticas podem ser entendidas como social washing, na medida em que as instituições financeiras protegem a própria reputação, dando declarações públicas e/ou se comprometendo com critérios socioambientais em políticas de responsabilidade, mas, na prática, adotam um comportamento contrário a elas. O Guia dos Bancos Responsáveis, iniciativa conduzida pelo Idec, Sou da Paz, Conectas Direitos Humanos e Proteção Animal Mundial , avalia e monitora os compromissos assumidos pelos maiores bancos que operam no país, sendo Transparência e Prestação de Contas um dos temas avaliados.

O que se observa é que os bancos que atuam no mercado brasileiro possuem poucos compromissos com a prestação de informações públicas sobre suas atividades. Essa falta de transparência é ainda mais evidente quando analisamos informações relativas a suas carteiras de investimentos e a atuação de suas empresas subsidiárias. Além disso, a análise do GBR permite aferir que compromissos como relativos à prevenção do endividamento do consumidor não são respeitados fora do papel. Ou seja, além de um grave problema de transparência sobre suas práticas, os bancos brasileiros contribuem para o agravamento das vulnerabilidades sociais.

O Consignado no Auxílio Brasil

O Auxílio Brasil é o programa social que substitui o Bolsa Família e deve garantir alimentação, saúde, educação, água, energia e gás para as famílias em vulnerabilidade social. A nova lei prevê a retenção de 40% do valor do Auxílio Brasil para o crédito consignado. O valor atual do benefício, vigente somente até dezembro de 2022, é de R$600. Após dezembro, estima-se que o valor voltará para a quantia de R$400, conforme previsto na proposta de orçamento do Governo para a União em 2023. Dessa maneira, uma família que contratar essa forma de empréstimo terá que viver com apenas R$240, já que R$160 serão descontados automaticamente para pagar a parcela do crédito aos bancos. Portanto, o consignado é uma porta de entrada para o ciclo contínuo de uso de crédito e agrava ainda mais o endividamento, que hoje já atinge 77% das famílias.

A lei não regulamenta um teto para a taxa de juros que poderá ser cobrada, deixando a cargo dos bancos essa definição. Os bancos, que já iniciaram pré-contratos de crédito consignado, cobram juros de até 100% ao ano, de modo que uma dívida pequena pode se transformar em uma enorme bola de neve. Desse modo, há registros de taxas de juros três vezes maiores que as praticadas em outras modalidades de consignado no mercado, como os de funcionários públicos, aposentados e pensionistas do INSS. Assim, tendo em vista que o crédito consignado representa baixo risco para as instituições financeiras quando comparado a outras modalidades de crédito, as taxas de juros deveriam ser ainda mais baixas, especialmente quando consideramos os aspectos sociais do público alvo deste produto.

Uma vez que o pagamento da dívida é descontado automaticamente do benefício, cabe alertar que, numa situação de emergência, não existe a opção de não pagar a parcela e ficar em atraso. Esta situação favorece os bancos que se beneficiam da garantia do pagamento das parcelas em detrimento do grave impacto deste desconto do benefício social no orçamento doméstico de milhões de famílias em situação de pobreza. Será ainda mais difícil se deixar de receber o benefício, mas ser obrigado a pagar parcelas mensais para o banco.

Diante desse cenário, um levantamento feito pelo Idec buscou analisar como as instituições financeiras estão se posicionando em relação à oferta de crédito consignado aos beneficiários do Auxílio Brasil, e se estão cumprindo, na prática, com as suas declarações públicas e políticas de responsabilidade socioambiental.

O discurso versus a prática das instituições financeiras

1. Diretrizes de responsabilidade social só no papel

Apesar das diversas problemáticas que envolvem a oferta de crédito consignado no Auxílio Brasil, algumas instituições financeiras já anunciaram que irão operar tal modalidade. O Ministério da Cidadania informou que 17 instituições financeiras se registraram como ofertantes do crédito consignado, mas não há informações públicas até o momento sobre o nome destas instituições.

No levantamento realizado pelo Programa de Serviços Financeiros do Idec foi possível identificar que os bancos privados que já oferecem simulações para a contratação ou que têm correspondentes que já procedem um pré-cadastro para a oferta desta modalidade de crédito são: Pan, Safra, Facta, Agi, C6, BMG, Daycoval e Master. Além destas,  é provável que teremos muitas outras instituições financeiras nesta lista após a edição de normas complementares operacionais do Ministério da Cidadania sobre a medida. A Caixa, por exemplo, já anunciou que também oferecerá o consignado, mas ainda não informou as taxas de juros.

O levantamento do IDEC também analisou as redes sociais dos bancos ofertantes e revelou que Pan, Safra e Facta são os bancos mais ativos na divulgação deste produto. Importa lembrar que o banco Pan (antes Banco Panamericano SA), foi comprado em maio de 2021 pelo BTG Pactual, um dos bancos avaliados pelo Guia dos Bancos Responsáveis. Em seu relatório anual, o banco Pan informa ofertar as ferramentas corretas para os consumidores enfrentarem os obstáculos da vida e que, por esse motivo, busca oferecer “produtos com impacto positivo alinhados a iniciativas de educação financeira para as classes mais vulneráveis da sociedade brasileira”. Neste exemplo, questiona-se como a consignação de um benefício social com aplicação de juros abusivos poderia significar um impacto positivo? Ao contrário do discurso, a prática pode acarretar mais endividamento e restrição de acesso a bens básicos de consumo para famílias em situação de pobreza.

Outro banco avaliado pelo Guia dos Bancos Responsáveis que já anuncia a controversa oferta do consignado sobre o Auxílio Brasil é o Safra. Ainda assim, de acordo com seu último relatório de sustentabilidade, o Safra se compromete a “emprestar com critério, não estimular endividamentos desnecessários, mas financiar oportunidades de crescimento e evolução saudável.” Ademais, em sua Política de Relacionamento com Clientes, o banco se compromete a seguir as premissas “de concessão responsável do crédito”. Desse modo, assim como no caso do Banco Pan, constata-se uma clara divergência entre os compromissos assumidos pelo banco no papel e a sua prática, quando tomamos por exemplo o consignado no Auxílio Brasil.

2. Compromissos não valem para os investimentos

A política de investimento de muitos bancos não coincide com seus próprios valores e declarações. Alguns dos principais bancos privados - Itaú, Santander e Bradesco - anunciaram que não irão oferecer tal modalidade de crédito, a fim de evitar riscos reputacionais e jurídicos. De fato, representa um ganho de reputação para os bancos manifestarem publicamente que não compactuam em cobrar elevadas taxas de juros sobre o benefício social dos mais pobres. No entanto, essas mesmas instituições investem nos bancos que irão oferecer a modalidade de crédito. O Itaú Unibanco, por exemplo, é o quinto maior acionista do Pan. Também constam no quadro de investidores do Banco Pan o Santander e o Bradesco.

A partir desta constatação, espera-se que o compromisso social do banco seja coerente com toda a sua atuação, devendo contemplar também seus investimentos. Afinal, é o fomento financeiro irresponsável que viabiliza práticas injustas e exploratórias do setor privado. Com efeito, questiona-se se Itaú, Santander e Bradesco desinvestirão das demais instituições financeiras que irão oferecer o consignado sobre o Auxílio Brasil ou se irão pressionar estes bancos a também pactuarem com o não oferecimento desta modalidade de crédito.

3. Compromissos não são seguidos pelos correspondentes bancários

Outro problema intrínseco diz respeito à falta de transparência com que este crédito é usualmente oferecido no mercado. Os bancos têm uma rede de intermediários no relacionamento com seus clientes, os chamados correspondentes bancários, que, originalmente, tinham a missão de permitir a difusão geográfica dos serviços financeiros. Porém, hoje com mais de 200 mil empresas prestadoras de serviços em nome de instituições financeiras, estes empreendimentos concentram-se principalmente nos centros urbanos.

Desse modo, o levantamento do Idec também avaliou o comportamento dos correspondentes bancários nas redes sociais, meio muito utilizado por estes profissionais para conseguir clientes. Identificou-se que é comum tratarem o consignado do Auxílio Brasil como um crédito sem risco, fazendo anúncios agressivos ou trabalhando com pessoas influenciadoras que divulgam o consignado. Desta forma, pessoas vulneráveis que não têm familiaridade com o sistema financeiro são induzidas, sem o conhecimento da alta taxa de juros, a pegar o empréstimo. Quem mais precisa de dinheiro, recebe crédito caro do consignado, criando um ambiente de ofertas abusivas, falta de transparência, assimetria de informação e fraudes.

Curiosamente, os dois bancos BMG e C6 anunciaram publicamente que não iriam ofertar o empréstimo. No entanto, o levantamento do Idec revelou que alguns correspondentes bancários que oferecem o consignado Auxílio Brasil afirmam trabalhar para o BMG (controlado pela família Guimarães) e para o C6 Consig (antes Banco Ficsa) que foi comprado pelo C6 Bank em 2020. Os dois bancos, BMG e C6, devem esclarecer esta contradição para proporcionar clareza e transparência aos consumidores. A constatação atual de que os dois bancos afirmam publicamente não oferecer o empréstimo enquanto os seus correspondentes bancários já iniciaram pré-contratos é devastadora. A contradição no discurso indica mais um exemplo de falta de transparência e governança dessas instituições.

Conclusão

Uma vez que a tomada de decisões internas das instituições financeiras é capaz de afetar a vida de milhões de consumidores, o setor bancário precisa prestar contas de maneira clara e acessível sobre sua atuação. É direito básico de todo consumidor o acesso à informação, bem como a proteção contra publicidade enganosa.

Além disso, as instituições financeiras precisam ser responsabilizadas pelos impactos sociais provocados por suas escolhas sobre como atuar no mercado. O Código de Defesa do Consumidor também impõe como direito básico a prática de crédito responsável, a prevenção do superendividamento e a preservação do mínimo existencial para todos os consumidores.

Vimos que no caso do consignado no Auxílio Brasil há uma falta de transparência e responsabilidade social em vários níveis. O mercado em que o consignado é oferecido já é pouco transparente, com correspondentes que não mostram abertamente para quais bancos trabalham e que exploram a assimetria de informação em relação aos consumidores. Além disso, os bancos Pan e Safra se comprometem em suas diretrizes internas a oferecer crédito de modo responsável, mas anunciam que farão parte da lista de ofertantes do crédito consignado sobre o Auxílio Brasil. Já o Banco Itaú, Bradesco e Santander, ao mesmo tempo que se posicionam como não ofertantes para obter ganhos reputacionais, investem em outras instituições financeiras que irão oferecer este controverso produto. Por fim, no exemplo de C6 e BMG, embora tenham anunciado publicamente que não irão oferecer o consignado, é possível a oferta por meio de seus correspondentes que realizam um pré-cadastro para o crédito.

Conforme apresentado, tais práticas podem ser caracterizadas como social washing, o que mostra uma grande contradição dos bancos entre seus compromissos públicos e suas práticas. Ainda, é preocupante a hipótese de que, após a regulamentação da medida, outras instituições financeiras passem a oferecer o consignado no Auxílio Brasil de forma pouco transparente.

Nesse contexto, o Idec segue com o compromisso, por meio de iniciativas como o Guia dos Bancos Responsáveis (GBR), de continuar monitorando e cobrando das instituições financeiras práticas mais transparentes e comprometidas com questões socioambientais, resguardando a dignidade dos consumidores brasileiros, sobretudo aqueles mais vulnerabilizados.

(*) Luca Schiewe é pesquisador da Facing Finance, organização alemã da rede Fair Finance International parceira do Guia dos Bancos Responsáveis (GBR).

(*) Ione Amorim, economista e coordenadora do programa.

(*) Julia Catão Dias, advogada e pesquisadora do GBR; Fábio Machado Pasin, advogado e pesquisador do GBR.

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