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Fazer bom jornalismo é a melhor resposta às ofensas e ameaças

Carlos Eduardo Lins da Silva (*) | 27/08/2020 11:55

O presidente Jair Bolsonaro voltou a ameaçar e ofender jornalistas, após uma abstinência de dois meses, período em que se mostrou menos truculento do que foi ao longo de toda sua vida pública.

Seu ódio pela imprensa independente parece não ter arrefecido durante esse tempo de trégua tática, provocada pelo perigo que se acercou de seus filhos e de si próprio, após a prisão do “faz-tudo” da família, Fabrício Queiroz.

Foi uma pergunta sobre este ex-sargento da PM do Rio de Janeiro e ex-assessor do filho Flávio que fez renascer a ira pública de Bolsonaro.

O incidente diante da Catedral de Brasília reacende também o problema de como devem os veículos jornalísticos e seus profissionais reagir às investidas do presidente, que no dia seguinte voltou à carga com debochada afirmação sobre que tipo de pessoa está mais sujeito a morrer quando infectado pela covid-19.

O tema não é novo. No Brasil, começou a ser debatido logo após a posse de Bolsonaro. Nos EUA, já faz mais de quatro anos que o jornalismo tenta encontrar o rumo certo para cobrir Donald Trump, o grande ídolo e modelo do presidente brasileiro, que faz tudo para imitá-lo.

Lá, as coisas não foram muito bem. No embate entre Trump e a imprensa, esta perdeu prestígio e credibilidade em quase todos os estratos da sociedade americana, inclusive alguns que continuaram a apoiá-la, mas cansaram-se do tom monocórdico do tratamento dado por ela ao presidente.

Em diversas ocasiões, jornalistas chegam a adotar retórica parecida com a de Trump para rebatê-lo, o que transforma qualquer potencial diálogo em bate-boca desagradável para boa parte da audiência.

É difícil conter a indignação justa que toma pessoas decentes quando insultadas de modo zombeteiro e violento pelo poderoso inculto e bruto. Mas é contra esse tipo de adversário que não se deve ceder à tentação de usar as armas dele. Até porque com elas, ele é quem tem mais chances de sair-se melhor.

Depois que Bolsonaro levou um humorista com a faixa presidencial no peito para responder a perguntas de jornalistas que atendiam a suas coletivas mambembes em frente ao Palácio da Alvorada e distribuir-lhes bananas, muitos sugeriram que se passasse a simplesmente ignorar essas palhaçadas diárias.

Em princípio, tudo que um presidente da república faz é potencialmente notícia de interesse público e deve ser acompanhado pelo jornalismo. Isso é cem por cento certo em situações normais de uma democracia.

Nos EUA, há crescente movimento em defesa da chamada “clareza moral”, que levaria o jornalismo a abandonar seus princípios de perseguir a imparcialidade possível e de dar espaço a todos os atores relevantes do debate público. Com isso, os veículos se tornariam de oposição escancarada ao presidente.

Mas como estar seguro de quando personagem como Trump ou Bolsonaro cruza a linha e não deve mais ser tratado como um ator legítimo do jogo democrático?

Os jornalistas da República de Weimar podem ter passado por dilemas similares quando Adolf Hitler ainda participava de eleições limpas e fazia articulações para formar seu primeiro gabinete em 1933.

Como saber com segurança que o rompimento da ordem legal é iminente e é preciso opor-se com todos os meios disponíveis a quem pode praticá-la sem lhe dar nenhum tipo de espaço legitimador?

No Brasil de 2020, as instituições ainda têm imposto freios ao presidente que não esconde seus desejos totalitários. A imprensa, entre elas.

Mas o jornalismo, para ser eficaz na contenção do mal, precisa discernir sobre como agir para mais bem servir à sociedade: gastar muito tempo e espaço para rebater os impropérios verbais que o atingem ou investir com máxima ênfase no acompanhamento factual dos descalabros de sua administração, que prejudicam concretamente a vida dos cidadãos.

Não há estudos acadêmicos que determinem procedimentos mais adequados. O que se pode depreender da experiência dos EUA de Trump é que oferecer ao pretendente a tirano espaço quase ilimitado para repercutir suas sandices mais o favorece do que o prejudica.

Os seguidores de Trump e Bolsonaro pouco se importam quando seus ídolos são desmascarados e seus erros, mentiras, hipocrisias revelados. Parece que até o contrário ocorre: é disso que os fiéis desses populistas gostam. Eles os apreciam mais quanto mais ostensivos são ao praticarem suas infâmias.

Os veículos têm o dever, até em nome da história, de registrar os disparates todos que os potenciais ditadores proferem. Mas podem fazer isso de modo comedido, em espaço limitado. Não é preciso que muitas reportagens e diversos artigos tratem durante vários dias dessas injúrias.

Não devem gastar muito de seus cada vez mais parcos recursos e energia com os arroubos bombásticos de seus algozes.

A mais eficiente resposta é concentrar esforços no acompanhamento metódico e insistente dos danos para o país das ações do governo: o desmonte intencional de instituições como Ibama, Inpe, Funai, CNPq, Capes, universidades federais e outras; o incentivo a inescrupulosos garimpeiros e pecuaristas para que ocupem terras e incendeiem a floresta e o pantanal; os investimentos vultosos nas Forças Armadas em detrimento da saúde e da educação; a destruição sistemática de instrumentos de incentivo à produção cultural; o abandono de programas de defesa dos direitos de mulheres e crianças; o aparelhamento político das polícias militares estaduais; as relações suspeitíssimas da família presidencial com milícias paramilitares do Rio; o relaxamento do controle e rastreamento de armas; a injustificável campanha de propaganda de um remédio sem comprovação científica de eficácia para curar a covid-19; a escandalosa série de privilégios dados a militares na administração pública e nos regimes salariais e previdenciários; as controvertidas políticas econômicas; a destemperada política externa que jogou na lata do lixo a imagem do Brasil no mundo e faz o país alinhar-se em foros internacionais com as nações que mais desrespeitam direitos humanos. A lista de pautas é quase infinita;

Em vez de gastar grande espaço em responder às diatribes do presidente, esta poderia ser a agenda de prioridades da imprensa independente do país.

No terreno específico da perseguição a jornalistas, precedência deveria ser dada aos casos em que a integridade física de profissionais é efetivamente posta em risco, em vez de colocar em preeminência a resposta a vitupérios.

Quando o presidente e seus asseclas incitam sua legião de odientos a agirem nas redes sociais contra jornalistas cujos nomes, dados pessoais, informações privadas são expostas, aí se deveria focar maximamente a ação de defesa das vítimas, inclusive com a mobilização de outras instituições que possam lhe oferecer garantias.

De forma similar, como agora ocorre com um comentarista da TV Cultura de São Paulo, quando as hostes do bolsonarismo se empenham para promover uma avalanche de processos em dezenas de cidades do país para intimidar não só a ele mas a todos que manifestem opinião contrária à seita, veículos e associações profissionais e de classe deveriam ir a campo para defendê-los a ajudá-los.

É preciso reagir aos tabefes que Bolsonaro desfere contra os jornalistas, nunca oferecer a outra face. Mas a reação não precisa ser nem no nível rasteiro do ataque nem numa espécie de autopiedade exagerada, mas sim no exercício radical da profissão. Fazer bom jornalismo sempre e muito é a melhor resposta e a mais útil para a sociedade.

(*) Carlos Eduardo Lins da Silva é professor do Insper, livre-docente pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e colunista da Rádio USP

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