Ler a fome a partir da perspectiva interseccional: um desafio científico
A trágica volta do Brasil ao Mapa da Fome é pública e notória. O desmonte das políticas sociais nos últimos seis anos e a pandemia de covid-19 vulnerabilizaram ainda mais quem já estava em situação de vulnerabilidade, como as populações periféricas, pobres, quilombolas, ribeirinhas e indígenas. Também se constatou que a fome se tornou maior nos domicílios chefiados por mulheres.
A capacidade de obter alimentos é limitada entre mulheres e meninas, pois esta depende de relações de poder dentro de sistemas patriarcais e capitalistas. Em contrapartida, mulheres e meninas têm importante papel na produção, especialmente doméstica, de alimentos, realizando tal atividade de forma não remunerada, desvalorizada e muitas vezes voltada para os demais membros da família, negligenciando suas preferências e necessidades. Além de tais aspectos, que expõem mulheres e meninas à insegurança alimentar e nutricional, é relevante notar a “feminização da pobreza”, isto é, os maiores níveis de pobreza entre as mulheres ou os domicílios de chefia feminina.
As mulheres enfrentam, muito mais do que homens, condições como o desemprego, o subemprego, o trabalho doméstico não remunerado, os empregos informais, desvalorizados e mal remunerados, as condições precárias de trabalho, a diferença salarial em relação aos homens e a responsabilidade pelo cuidado dos membros da família. Tais relações entre gênero e pobreza colocam as mulheres em situações de vulnerabilidade social e insegurança alimentar.
Contudo, possivelmente para a surpresa de leitores e leitoras, as inferências supracitadas são excludentes. Como nos lembra Grada Kilomba, “a raça não pode ser separada do gênero e nem o gênero pode ser separado da raça. A experiência envolve ambos porque construções racistas baseiam-se em papeis de gênero e vice-versa”.
É neste sentido que o feminismo negro trabalha a perspectiva da interseccionalidade. Pode-se pensar na interseccionalidade como uma disposição analítica útil, porém ainda subutilizada, para entender os efeitos de sistemas convergentes de poder e opressão, focando nas relações entre processos entrecruzados que causam iniquidades diversas, como a insegurança alimentar. Essa disposição analítica concebe os marcadores sociais da diferença (como cor/raça, etnia, gênero, classe social, sexualidade, tamanho corporal, idade, incapacidades, entre outras) não como distintos, mas sim entrecruzados, fluidos, mutantes e permeáveis por outros marcadores.
Assim, o INCT de Combate à Fome pretende se lançar a este novo desafio interseccional em, pelo menos, duas frentes. Uma pretende analisar se e como os sistemas alimentares, e seus impactos nas práticas alimentares, constituem processos socioculturais complexos e interseccionais, que são criados por e criam dinâmicas de poder. A segunda se volta para uma análise mais complexa das estratégias e políticas públicas para o combate à fome e a realização do direito humano à alimentação adequada, uma vez que a interseccionalidade permite ir além da investigação dos efeitos dos determinantes sociais da saúde em tais estratégias e políticas.
Estas frentes se coadunam com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, da ONU, especialmente com o compromisso assumido pelo Brasil de, até 2030, erradicar a fome e garantir o acesso de todas as pessoas, em particular os pobres e as pessoas em situações interseccionalmente vulneráveis, à alimentação adequada e saudável. Ademais, o foco no poder e suas relações permite que a interseccionalidade seja uma práxis para promover justiça social e inclusão, extremamente necessária neste momento histórico.
O desafio científico e a demanda da sociedade são enormes, mas apostamos nos reposicionamentos teóricos e metodológicos que virão a partir do uso inovador de uma lente primorosa que faz emergir, na encruzilhada, a complexidade dos marcadores sociais da diferença.
(*) Fernanda Baeza Scagliusi é membro do GT USP "Políticas Públicas de Combate à Insegurança Alimentar e à Fome”.