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Marco Temporal e paisagens indígenas destruídas

José Otávio Catafesto de Souza e Carmem Lúcia Thomas Guardiola (*) | 06/08/2021 08:15

O Marco Temporal é tese política em defesa dos interesses de ruralistas, do agronegócio, de madeireiros, de mineradoras, de empreendedores hidrelétricos e de garimpeiros, a fim de anular os direitos garantidos pela Constituição Federal (CF) de 1988 aos povos indígenas quanto à aplicação de políticas especiais, principalmente, à regularização fundiária de suas Terras Indígenas (TIs). A tentativa é suprimir o Instituto de Indigenato, herdado da legislação colonial portuguesa (1680), estabelecendo serem os índios “primários e naturais senhores” das terras por eles habitadas, anulando direito por ocupações posteriores.

Desde maio de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu tanto os processos de reintegração de posse contrários aos indígenas quanto os pedidos de anulação dos processos demarcatórios que proliferaram em todo país, estabelecendo o julgamento do Recurso Extraordinário n.º 1.017.365, interposto pela Funai em favor dos indígenas para ter repercussão vinculante, servindo para todos os demais processos demarcatórios. Trata-se do julgamento do pedido de reintegração de posse por parte do estado de Santa Catarina contra o povo Xokléng no território Lãklaño em Ibirama, área de 37 mil hectares habitada por cerca de 2 mil indígenas.

A conjuntura política e jurídica brasileira atual está desfavorável aos povos indígenas. É preocupante também para quem pesquisa e ensina ciência nos campos da etnologia afroindígena e da etnoarqueologia, abordando temporalidades de longa duração, milênios de história ameríndia antes de Pedro Álvares Cabral. A etnologia permite conhecer e difundir as diferenças culturais originárias da América do Sul, repercutindo o que dizem essas outras vozes (originárias, negras, mestiças) reiteradamente silenciadas, refletindo sobre a existência desses outros corpos submetidos aos rigores nefastos e violentos da civilização brasileira.

Enquanto o Executivo desmantela avanços na proteção ambiental e na execução de políticas especiais duramente conquistadas pelos movimentos sociais desde a CF de 1988, o Legislativo se mobiliza em emendas constitucionais (por ex.: PEC 215) e em projetos de lei (por ex.: PL 490), que objetivam neutralizar e reverter os avanços no reconhecimento de direitos diferenciados, principalmente, suspender a homologação final das Terras Indígenas. O Judiciário adia sistematicamente uma decisão que lhe cabe assumir para definir de que lado da balança ele está posicionado: do lado do patriarcalismo eurocêntrico ou do lado das matrias e fratrias negras e indígenas?

Não há como usar meias-palavras: o Marco Temporal é tese etnocidária, talvez até mesmo genocida. Ela refuta que grupos indígenas tenham direito de posse e usufruto permanente, exclusivo, inalienável, indisponível e imprescritível das Terras Indígenas que eles não ocupassem efetivamente em 05 de outubro de 1988, data de vigência da CF. O Marco Temporal desconsidera tanto o ritmo multimilenar de mobilidade e itinerância característico da territorialidade tradicional ameríndia (ocupação intermitente de locais, deslocamentos circulares) quanto o fato de os grupos originários saírem de suas terras tradicionais por coerção e por violência praticadas pelos europeus e seus descendentes.

O genocídio e o etnocídio fazem parte da história do Brasil, e o Marco Temporal confirma essa regra. Aparentemente, já não há derramamento de sangue, mas, como dizem os indígenas: “Antes nos matavam com epidemias, depois com armas de fogo, hoje os brancos estão nos matando com canetas”. Do ponto de vista da etnoarqueologia, repercutindo o reclamo dos povos originários atuais, o Marco Temporal é uma aberração que escancara o imediatismo que configura nosso projeto de civilização. Interessa mais sugar a terra e seus recursos a curto prazo e baixo investimento, deixando um rastro de destruição com alto custo em passivos ambientais e sociais. Se aprovado for, mais uma vez, a caneta vai passar como trator por cima dos direitos originários, fazendo terra arrasada daquelas que foram outrora as paisagens originárias americanas.

São paisagens manejadas ao longo de centenas de gerações e milhares de anos, proliferando recursos em termos de biodiversidade. É preciso acabar com o mito iluminista quanto à suposta natureza intocada, segundo a qual os indígenas seriam apenas passivos. Havia e há etnoconhecimentos profundos e originários desprezados pelos descendentes de europeus. Manejos agroflorestais imemoriais dos ameríndios que permitiram o aparecimento de pomares de castanheiras e açaizeiros na Amazônia, do pequi no Cerrado, da Juçara na Mata Atlântica, dos pinheirais de araucária no Planalto Meridional e dos ervais (erva-mate) e dos butiazais (palmares) no sul do Brasil.

Mas é possível ir ainda mais longe na crítica quanto ao absurdo do Marco Temporal. Pelas perspectivas da antropologia, da psicanálise e da filosofia, é possível entender a mentalidade de políticos e dos megaempresários, mais uma vez confirmando a tese da esquizofrenia das elites descendentes de europeus nascidos nos países americanos, naquela dimensão que o filósofo argentino Rodolf Kusch chama de América Profunda. Profundidade que é ao mesmo tempo temporal e mental.

Para abordar essa esquizofrenia, trazemos a metáfora quanto aos dilemas subconscientes herdados pelo mestiço desterrado, bastardo e deserdado pelo pai branco europeu, para paradoxalmente tomar esse pai denegado como espelho para repudiar ou velar sobre seu vínculo com a mulher índia ou negra que foi estuprada à sua concepção. Usamos o exemplo do mestiço, mas ele também tem alguma validade para o caso dos que não possuem aparente mestiçagem, mas radicados com interesses no Brasil. Como diz Eduardo Viveiros de Castro, no Brasil todo mundo é índio, mesmo quem não é. Como estarão as mães e ancestrais originárias dos juízes e juízas na decisão final quanto ao Marco Temporal?

(*) José Otávio Catafesto de Souza é etnoarqueólogo e professor do Departamento de Antropologia.
(*) Carmem Lúcia Thomas Guardiola é estudante de Ciências Sociais e pesquisadora do Laboratório de Antropologia e Etnologia (LAE).

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