Mulheres afegãs entre colonialismo e Talibãs
Asaída dos EUA do Afeganistão foi um avanço do ponto de vista da autonomia governamental de um país como Afeganistão. Não tenho dúvidas quanto às verdadeiras intenções norte-americanas que nunca foram proteger ou contribuir com o desenvolvimento econômico, social, político dos afegãos. O interesse sempre foi colonialista na busca de supostos “terroristas islâmicos”, a fim de “impedir” que o Afeganistão desse proteção para a organização fundamentalista Al Qaeda, e impedisse a captura de Osama Bin Laden.
Após 20 anos de intervenção americana em território Afegão constata-se que não houve benfeitoria alguma para o país. O Afeganistão continuava subdesenvolvido, com pouca escolaridade, um sistema de saúde precário e com a retirada dos recursos dos EUA a pobreza se ampliou.
Se por um lado, consideramos fundamental a saída dos EUA, e da sua dominação colonialista, por outro, lamentamos que a retorno do Talibã ao poder tenha retirado ainda mais os direitos das mulheres. Os dados apresentados pela Anistia Internacional demonstram claramente que são as mulheres as mais penalizadas no governo atual. A pesquisa sobre a situação de mulheres e meninas sob o domínio talibã de setembro de 2021 a junho de 2022 não deixa dúvidas sobre a situação das mulheres, foram entrevistadas 90 mulheres afegãs e 11 meninas.
Essas mulheres e meninas tinham entre 14 e 74 anos e viviam em 20 das 34 províncias do Afeganistão. Segundo informações do próprio relatório a Anistia Internacional também entrevistou seis atuais ou ex-funcionários da detenção administrada pelo Talibã; 22 funcionários de ONGs nacionais e internacionais e agências e mecanismos da ONU; e dez especialistas e jornalistas afegãos e internacionais. A pesquisa foi realizada presencialmente com entrevistas no Afeganistão de 4 a 20 de março de 2022, bem como por meio de entrevistas remotas.
O relatório aponta que as universidades públicas foram fechadas para estudantes do sexo masculino e feminino por meses, finalmente permitindo a abertura em fevereiro de 2022. Muitas universidades privadas reabriram logo após agosto de 2021 para estudantes do sexo masculino e feminino. A Anistia Internacional afirma que as restrições às mulheres, pelo Talibã, sobre o comportamento, vestimenta e oportunidades em universidades públicas e privadas contribuíram para um ambiente em que não se sentem à vontade. A segregação de gênero e obrigação de vestimenta determinada pelo Talibã fez com que muitas mulheres deixassem de se matricular nas universidades. Cursos noturnos são proibidos para mulheres e elas são proibidas de viajar mais de 70 km se não estiverem acompanhadas por um homem.
O relatório da Anistia Internacional aponta que o Afeganistão tinha quase 40% das meninas matriculadas na escola em 2018, em comparação com 6% em 2003. Antes de agosto de 2021, apenas 37% das adolescentes podiam ler e escrever, em comparação com 66% dos meninos. Isso demonstra que nem a presença americana mudou a realidade dessas mulheres e meninas.
Dia 15 de Agosto faz um ano que o Talibã assumiu novamente o governo do Afeganistão e que suas novas medidas de segregação de gênero e de indecisão quanto à formação intelectual de meninas e mulheres fez com essas ficassem em casa por medo, mas não significa que essas que optaram por não ter os enfrentamentos diários se renderam, pois há relatos de mulheres que seguem estudando online, aprendendo inglês, etc. A tecnologia tem sido uma porta de acesso a outros mundos, mas isso ainda é para uma minoria. A grande maioria segue analfabeta.
Se as condições na educação ficaram reduzidas, no trabalho houve a mesma redução, as mulheres foram proibidas de trabalhar em muitas regiões. Não há mulheres trabalhando nos gabinetes, como anteriormente, a essas foi recomendado ficar em casa. O Ministério de Assuntos da Mulher não está mais funcionando, e a antiga sede do ministério em Cabul foi reaproveitada para abrigar o Ministério do Vício e da Virtude. As mulheres continuam trabalhando em determinadas funções que eles consideram como não sendo “trabalho de homem”. Os problemas com educação e trabalho feminino variam de região para região. O fato é que muitas mulheres do setor privado foram demitidas, principalmente as que tinham bons salários; quando não eram demitidas tiveram seus salários reduzidos, tornando as vagas para mulheres limitadas.
Se a realidade imposta é essa, podemos dizer, que vencemos o colonialismo, mas não vencemos o patriarcado, que insiste em esconder mulheres, segregá-las. Os direitos islâmicos em relação à garantia de estudo, trabalho e dignidade às mulheres não vem sendo praticado. A pobreza extrema certamente levará para o casamento jovens, sem instrução e perspectiva de vida.
Após um ano da reviravolta do Talibã, que foi apoiado por muitos países, inclusive por países islâmicos, é bom refletir que sociedade se espera para as mulheres se elas precisam sair escondendo seus rostos, sem estudo e ao lado de um homem. Que prática devastadora é essa que não dá às mulheres à dignidade e o valor que lhes é atribuído no Alcorão e na sunnah do Profeta?
Segundo os dados da Anistia antes de 2021, o Afeganistão tinha uma das maiores taxas de violência contra as mulheres no mundo, com nove em cada 10 mulheres sofrendo pelo menos uma forma de violência, no entanto, muitas mulheres e meninas pelo menos tiveram acesso a uma rede de abrigos e serviços, incluindo representação legal, tratamento médico e apoio psicossocial. Essas mulheres recebiam alguma assistência por meses e ou anos. No atual governo esses abrigos foram fechados e as mulheres foram enviadas de volta para sua família.
Há um ano eu escrevia para os Jornalistas Livres o texto: “Feminismo ocidental não pode ditar regras para mulheres muçulmanas” Naquele período era recente para dizer algo sobre essa tal “anistia” dos talibãs em relação às mulheres, mas era possível considerar essa proposição, dar escuta, no entanto, após esse tempo podemos dizer que são sim, as mulheres que mais têm sofrido. Ainda tomo a questão com o devido cuidado, pois as sutilezas do tema esbarram sempre na demonização de determinados grupos, mas é fato que quando se trata de talibãs, os tais “corajosos” homens não se esforçaram muito para estar no poder (se é que um dia saíram), e tomar para si o governo e as mulheres.
Há reflexões importantes que teci com duas pesquisadoras do Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes (Paiva & Pasqualin 2022) no capítulo que intitulamos “A caminho de Kandahar: Talibã, Sharia e a falácia da salvação de mulheres muçulmanas”, que devem ser consideradas pelo leitor pouco familiarizado com as temáticas que envolvam mulheres, Islam e Talibã.
O relatório da Anistia Internacional também deve fazer parte das leituras de pesquisadores e pessoas interessadas em contribuir para mudança de posicionamento de governos que oprimem mulheres. Denunciar todo e qualquer tipo de violação de direitos humanos é nossa responsabilidade social. A ideia não pode ser nunca salvacionista ou promovendo islamofobia, como é hábito de muitos, mas sim, não deixar que o debate adormeça e só reapareça em datas que relembrem os episódios que marcam a história do Afeganistão. As mulheres afegãs merecem respeito pela religião que professam, pelos valores sociais que defendem e sobretudo por sua vontade de estudar e trabalhar contribuindo por uma sociedade mais justa. Não lutamos por elas, lutamos com elas, a partir daquilo que elas nos dizem o que são suas lutas, seus desejos e seus sonhos.
Que no próximo ano eu possa escrever mais feliz sobre a realidade dessas mulheres, por enquanto, trocamos o colonialismo pelo patriarcado.
(*) Francirosy Campos Barbosa, professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP.