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O desafio invisibilizado da maternidade solo na academia

Taís Ferreira (*) | 06/09/2022 08:21

Instigada pelo artigo “Parentalidade e carreira científica: o impacto não é o mesmo para todos”, recém-lançado pelas colegas do movimento Parent in Science, que vêm fazendo um trabalho de grande relevância no levantamento de dados relativos à maternidade e à vida acadêmica de estudantes, professoras e pesquisadoras brasileiras, decido parar por algumas horas a “roda viva” de atividades laborais na Universidade e funções maternas para dar voz a um lugar de extrema invisibilização no meio acadêmico: a maternidade solo.

É necessário conceituar, ainda que brevemente, o que se convencionou chamar por “maternidade solo”, termo que substitui aquele carregado de sexismo e que vinculava a maternidade ao estado civil das mães: “mãe solteira”. Uma mãe solo é aquela que é responsável, se não de forma absoluta, quase em sua totalidade, pelos cuidados diários, pela criação psicofísica e pelo provimento (afetivo e financeiro) de seus filhos.

Segundo dados (já defasados) do IBGE, estima-se que, no Brasil, haja mais de 11 milhões de mães solo, de lares chefiados e conduzidos por mulheres inteiramente responsáveis, em sua maioria negras. Outro dado que não pode ser jamais esquecido é o de que mais de 5 milhões de crianças sequer têm o nome de seus genitores no registro de nascimento, cabendo às mães, inclusive legalmente, a totalidade de responsabilidades para com as crianças.

Urge desnaturalizar esses índices e perguntar: onde estão esses homens que impunemente se furtam, todos os dias, de suas obrigações parentais? Por que naturalizamos que mulheres sejam oneradas dessa forma em nossas estruturas sociais e renegamos as especificidades das relações afetivas, laborais, psíquicas de uma mãe submetida a esse tipo de maternidade? E uso aqui propositalmente o termo “submetida”, porque são raríssimos os casos em que uma maternidade solo é uma escolha feminina: no geral, a maternidade solo é fruto do mais perverso abandono paterno, aquele que segue a um rompimento afetivo entre os adultos ou a uma gravidez não planejada.

Quantos homens conhecemos que não se relacionam ou cuidam de seus filhos por “opção” ou “porque precisam se dedicar às suas carreiras”? Incluídos aqui muitos de nossos próprios colegas pesquisadores e professores universitários, não esqueçamos.

Socialmente essa “opção” não é dada a uma mulher, seja ela uma empregada doméstica, uma profissional liberal, uma estudante ou uma professora universitária: “quem pariu Mateus que o embale”, não é este o ditado nefasto que tira da coletividade qualquer obrigação com nossas crianças, ou seja, com a construção das sociedades e do próprio mundo?

As colegas autoras do artigo ao qual me refiro no início deste texto levantam dados sobre as dificuldades e os entraves enfrentados por nós, acadêmicas, no seguimento de nossas carreiras após a maternidade. Apresentam, de modo muito pertinente, também fatores de interseccionalidade, quais sejam: raça/cor, mães com deficiência, mães de pessoas com deficiência, mães LGBTQIA+ e classe social. Obviamente que do lugar que ocupo, de uma mãe solo acadêmica, professora e pesquisadora há 18 anos em IFES, percebo que a especificidade de minha condição não é aqui nomeada na lista. Como uma mãe 100% solo, que cria uma menina sozinha há 4 anos e viveu uma gravidez também sozinha, trabalhando em ensino, pesquisa e extensão até 5 dias antes do parto, que orquestra sua vida laboral e doméstica de modo a dar conta das demandas todas e ainda ter alguma sanidade psicofísica e vida social, não pude deixar de notificar as colegas sobre a ausência da “categoria mãe solo” nos fatores mencionados. Evoquei também os meses fatídicos de isolamento social pandêmico em 2020, em que trabalhei acompanhada de um bebê de 1 ano e quatro meses 24 horas por dia, processo apresentado em artigo já publicado em periódico acadêmico.

Este pode parecer um questionamento de ordem subjetiva, e certamente o é, mas sei que não estou sozinha. Não sei, no entanto, quem são (nominal ou numericamente) as mães solo na minha sala de aula, nos grupos de pesquisa que frequento, nos projetos de extensão que coordeno, nas bancas de trabalhos acadêmicos, nas reuniões de conselhos e comissões. Quem são elas? Quem somos nós? Onde estão as mães solo (estudantes, servidoras, bolsistas de pós-graduação, professoras) na Universidade?

Posso inferir que estejam invisibilizadas, que cumprem suas tarefas, que não reclamam e torcem para não serem acusadas de prejudicar o “bom andamento da máquina acadêmica” com suas “demandas menores”, pois, afinal de contas, os cuidados parentais não são um problema ou uma questão que deva vir à baila no debate público acadêmico: nosso ethos não comporta a existência de crianças, quiçá a existência de mulheres que ocupam postos dentro da universidade e criam filhos sozinhas (no mínimo uma “ousadia” para a conjuntura patriarcal).

Cumpre notar que falamos aqui de uma maioria branca (portanto portadora de privilégios oriundos da branquitute) de servidoras públicas, ou de assalariadas de instituições privadas de ensino, por vezes de bolsistas dos diversos níveis de pós-graduação. Isso por si só já colocaria essas maternidades em um lugar não só de privilégio, como de possibilidade de construção de redes de apoio pagas (cuidadoras e escolas de educação infantil privadas). Não esqueçamos das mães indígenas, negras, pobres e em situação de extremo risco social que sequer conseguem acessar a universidade ou se manter nela, caso ingressem (reitero aqui a necessidade da manutenção e ampliação das políticas de cotas e ações afirmativas e de assistência estudantil).

Aprioristicamente, de maneira naturalizada, parte-se do pressuposto de que a parentalidade é exercida por uma dupla (composta por um homem e uma mulher, ou por duas mulheres ou dois homens). Ainda que tudo aquilo que acompanho publicado sobre o tema explicite que a mulher da díade é aquela que carrega um maior peso ao arcar com mais responsabilidades nos cuidados com a vida doméstica e os filhos, mesmo que tenha uma carreira bem-sucedida e rede de apoio, não podemos mais silenciar a existência de mulheres que criam seus filhos sozinhas, muitas vezes amparadas por outras mulheres (tias, avós, vizinhas) que também criaram os seus, perpetuando o ciclo de abandono parental, de descaso coletivo e alijamento dessas famílias do ensino superior, da formação acadêmica e da carreira científica.

Assim, de que modo específico a maternidade solo impactaria a carreira acadêmica de uma profissional e/ou a possibilidade de construção de uma trajetória na universidade por uma estudante? Respondo lançando perguntas, já que ainda não dispomos de dados, mas contamos com a observação empírica dos nossos contextos.

Os horários da universidade estão adaptados aos horários das escolas de educação infantil e do ensino regular? Há flexibilidade de gestores e coordenadores para adaptação desses horários em virtude das necessidades/realidades das mães? Crianças são bem-vindas nos ambientes da universidade no caso de não haver com quem deixar a criança? Há bolsas específicas ou cotas para mães solo nos sistemas de ingresso e de concessão de bolsas? Mulheres mães solo são acolhidas (ou julgadas e em seguida excluídas) quando crianças adoecem e elas são as únicas responsáveis, tendo que remarcar compromissos, bancas, compensar aulas, ter algum prazo estendido, etc.? E o que acontece quando essa mulher, mãe solo, adoece? Quem cuida da mãe que cuida sozinha? Como incentivar mães solo a participar de eventos acadêmicos, já que não há com quem deixar as crianças? Como validar a produção científica de mães solo, impossibilitadas de realizar funções fora dos horários restritos de trabalho diurno nos quais as crianças estão na escola ou com cuidadoras?

Por fim, e não menos importante: existem creches universitárias? O silenciado fechamento arbitrário da Creche da UFRGS neste ano de 2022, seu anterior gradual sucateamento e o uso das demandas legítimas da comunidade indígena (que foi realocada no prédio que abrigava a creche) como fator de “abafamento” de qualquer reivindicação pela reativação do serviço/unidade são reveladores do lugar que mães (estudantes, servidoras e professoras), notadamente aquelas que exercem uma maternidade solo e, portanto, necessitam de rede de apoio, ocupam nas hierarquias universitárias.

(*) Taís Ferreira é professora da área de Artes (Teatro) da Faculdade de Educação da UFRGS.

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