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O legado da possibilidade

Por Daniel Medeiros (*) | 01/03/2020 08:19

Quando podemos dizer que uma coisa deu certo? O que é, afinal, um sucesso? Essas perguntas são fáceis de responder quando o objetivo é muito restrito, específico. Se alguém queria comprar algo e comprou, pronto, foi bem sucedido; se pretendia chegar em algum lugar e chegou, deu certo. Mas quando o propósito é maior, mais complexo, sem limites muito claros e previsíveis, como é que fica?

Por exemplo, construir um país democrático.

Como sabemos, foram os gregos que tiveram essa ideia incrível de suspender as diferenças entre as pessoas e considerá-las, para efeito das decisões públicas, iguais. Assim, o nobre, o comerciante, o artesão, o agricultor, desde que cidadão, lá na ágora, era igual, tinha direito a ter voz como qualquer outro que estava ali. Não sei o que vocês acham disso, mas para mim é uma coisa incrível essa ideia. Não há, na natureza, e nunca havia existido antes nas sociedades conhecidas, uma ideia como essa, na qual a imaginação criava um campo de igualdade que anulava provisoriamente as diferenças reais e permitia que outras qualidades pudessem ser destacadas: o diálogo, a persuasão, o acordo, o consenso.

E deu certo? Foi um sucesso? Bom, aí é que está. Essa é a questão.

Em favor da democracia, o que podemos dizer? Deu voz a quem não era bem nascido e bem nutrido e permitiu que várias maiorias fossem formadas em favor de demandas dos grupos mais vulneráveis. Boa parte do mundo experimentou esse modelo, com maior ou menor grau de incremento, e os resultados apareceram. Mas nada foi perfeito. Porém, o sucesso exige perfeição? E o que seria essa perfeição? Aí que está. Os gregos só admitiam na praça os homens nativos adultos. O tempo passou e a ideia de isonomia ampliou-se, incluindo mulheres e jovens. Em um país como o nosso, já somos quase 150 milhões de pessoas aptas a votar e a decidir quais ideias queremos que determinem os rumos dos nossos espaços públicos. Sucesso. Ou não?

Um outro aspecto muito relevante na democracia é que as ideias vencedoras nunca são definitivas. Como são resultado dos consensos e os consensos são provisórios, quem é derrotado naquilo que defende pode melhorar seu argumento, refinar suas estratégias de persuasão e ter a certeza que logo terá a chance de lograr êxito e ver suas ideias sendo implementadas. O caráter dinâmico da democracia é uma das marcas mais valiosas dessa invenção. Saber utilizá-la é um desafio constante para a sua existência.

Ainda outra coisa importante: todos os que se reúnem em torno de uma cidade-estado contribuem para a sua manutenção e os destinos desses recursos são decididos por representantes escolhidos na praça. Logo, a democracia tem também um importante papel no processo de diminuição das diferenças entre os nobres, os comerciantes e os artesãos, na medida em que pode implementar políticas de distribuição de recursos para setores mais desfavorecidos e, ainda assim, preservar as diferenças que existiam antes de sua configuração. Logo, a democracia nunca foi pensada para ser um sistema para criar uma igualdade real entre as pessoas, mas é um simulacro de igualdade que permite, provisoriamente, aos diferentes, uma instância de diálogo, na qual esses diferentes podem se olhar desvestidos de suas diferenças e aceitar concessões mútuas em nome de uma convivência comum.

E funcionou? Funciona? Pode funcionar melhor?

Não tenho dúvida que sim. Não vejo, aliás, outra invenção melhor, com exceção, talvez, da anestesia e do chocolate amargo com pistache. O que precisamos, sem dúvida, é investir nossos esforços na ideia de que a perfeição nunca foi o propósito da democracia. O sucesso da democracia está na sua dinâmica, na sua persistência em apostar no diálogo de pessoas que, em outras circunstâncias, não teriam motivos para sequer olhar umas para as outras – e crer que acordos democráticos nunca deixam todos felizes, mas certamente evitam que se odeiem a ponto de quererem se matar. É uma estratégia de sobrevivência social, mais do que uma utopia coletivista. É um antídoto para nossa natureza egoísta, mais do que um libelo pela fraternidade eterna. É um mecanismo de defesa de pluralidade, de paz, mesmo que não de amor.

(*) Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.

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